Peço desculpas aos defensores do movimento Black Bloc, mas não encontrei outra imagem senão a cena da sua ação e das forças que os reprimem para expressar o que estão tentando fazer com o Brasil.
Em 1989, as vésperas do segundo turno da primeira eleição presidencial após a ditadura, o então presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Mario Amato, cravou uma expressão que ficou para a história: “Se esse Lula ganhar, no outro dia, 200 mil empresários sairão do país”. Era a face pública de uma elite preconceituosa que buscava espalhar o medo quanto a chance real de um operário ser presidente. Depois de sucessivas eleições, aprendizado nos governos municipais e estaduais e na construção nacional de um movimento social forte e ativo, Lula assumiu a Presidência da República em 2003. E liderou o início do período mais virtuoso da economia brasileira.
Por outro lado, essa turma sabe o legado deixado ao país por conta da aventura política capitaneada pelo PSDB após sua derrota em 2014. Soma-se ainda o fundamentalismo dos “puros versus os criminosos”, aqueles que defendem o combate à corrupção, mas cegam-se em relação à Constituição, ao Estado de direito e as consequências para quem vive, trabalha ou emprega, nos setores mais afetados em operações como a Lava Jato. Em saúde pública, temos um ditado que diz que o epidemiologista não pode ficar concentrado na tela do computador e de seus números e se esquecer de olhar para o paciente. É preciso “ouvir a janela da sua unidade de saúde”.
Das 16 empresas envolvidas há mais de dois anos na Operação Lava Jato, apenas quatro conseguiram fazer acordo de leniência. Todas estão excluídas de participarem de investimentos públicos no Brasil, além da quebradeira nos seus quadros decorrentes dessa situação.
Aos moços da chamada meritocracia que tanto babam nas experiências do hemisfério norte, deveriam saber que, enquanto nos Estados Unidos e na Europa prevalece o “self cleaning”, onde os executivos são duramente punidos e as empresas retornam rapidamente ao mercado, aqui, no Brasil, está vigorando o que o físico Rogério Cerqueira Leite cunhou da “lei do cowboy vingativo”. É “aquele que por vingança do inimigo mata o cavalo do rival e morre no deserto com sede e fome por não ter como sair dali”.
Exemplos não faltam. No caso da corrupção descoberta em contratos da General Eletric com o Pentágono, no início dos anos 1990, a empresa teve os responsáveis punidos e, em menos de um mês, foi autorizada a retomar suas atividades. Assim foi com a IBM, que nem interrupção sofreu, ou com a Volkswagen, na Alemanha. Aqui, nestes quase três anos, tivemos projetos interrompidos em setores econômicos estratégicos, como energia, petróleo, gás e defesa. Sem contar o impacto que a destruição ou inatividade das empresas têm gerado para outros segmentos de infraestrutura (aeroportos, estradas, logística) ou para segmentos aos quais se associaram (da indústria da saúde ao agronegócio) e aos trabalhadores e suas famílias (desemprego, perda de direitos sociais, impactos nos custos dos serviços de saúde e assistência social).
Sofremos a aventura do ‘austericídio’ definitivamente instalado após o golpe. A ideia de que só é possível fazer a economia crescer com uma medida: derrubá-la ao chão primeiro. É um mote cujos maiores interessados são os operadores do mercado de títulos da dívida pública. É estabelecido um dogma de que todo país, em qualquer situação econômica, social ou política, não pode deixar sequer um sinal que revele elevação de gastos públicos ou margem para tal, com consequente redução de pagamento dos títulos da dívida pública.
O governo Temer ficará para a história mundial como o criador da autoridade mais longeva do mundo, 20 anos de cortes nos investimentos públicos. Suas medidas apressaram a redução do PIB imediatamente, retardaram a queda dos juros reais e sinalizaram a estagnação de anos para alguns segmentos importantes da economia, como a saúde, que impactava 9% do PIB.
O novo governo também deixou de apostar no fortalecimento da capacidade produtiva e tecnológica do Brasil. Durante os governos Lula e Dilma, um dos debates do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, que presidi na condição de ministro da Coordenação Política, foi sobre a construção da agenda de desenvolvimento para o país. O que o Brasil precisava fazer para sustentarmos aquele ciclo histórico de crescimento iniciado em 2004/2005? As apostas consensuadas entre empresários e trabalhadores, academia, MST e outros, eram, em primeiro lugar, investir na educação; em segundo, fortalecer a capacidade produtiva nacional, reduzir as desigualdades regionais e dotar o Estado de instrumentos capazes de estimular e apoiar a economia e destravar suas amarras regulatórias.
Como consequência disso, iniciamos um conjunto de políticas, leis, instrumentos de estímulo e fóruns de gestão em quatro setores estratégicos que poderiam contribuir para tais mudanças: petróleo, gás e energia (só a cadeia do petróleo e gás, à época, significava 13% do nosso PIB); defesa (pela alta capacidade de incorporação tecnológica); saúde (alta incorporação tecnológica e à época impactava em 9% o PIB brasileiro); e agricultura (compreendendo agricultura familiar e a produção em alta escala com foco no comércio internacional, o chamado agronegócio).
Em todos esses segmentos, a diretriz de fortalecermos a capacidade nacional, a geração de empregos e a tecnologia no Brasil, independente da origem inicial do investimento, guiava todas as nossas políticas. Quando ministro da Coordenação Política e articulador da aprovação do marco regulatório do pré-sal, em 2009 e 2010, acompanhei de perto as discussões do quanto era necessário a incorporação e inovação tecnológica no Brasil para passarmos um dia a produzir aqui os equipamentos altamente sofisticados de prospecção e extração do petróleo a 4km abaixo do nível do mar e sob uma temperatura e pressões inimagináveis.
Eram muitas novidades em sondas, peças, plataformas, o que exigiu a qualificação de milhares de engenheiros e especialistas do setor público e privado mundo afora. E, para tal, mobilizamos o Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), universidades, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e a capacidade de investimento e qualificação das empresas privadas. A partir de 2011, quando assumi o Ministério da Saúde, a pauta foi, junto com todos os empresários e trabalhadores do chamado complexo produtivo industrial e serviços da saúde, dotar o Brasil da capacidade de produzir de forma autônoma vacinas, medicamentos para o câncer e doenças inflamatórias, provocando uma grande reestruturação das empresas públicas e do setor privado nacional ou internacional instalado aqui no Brasil.
Dezenas de produtos, cuja tecnologia foi incorporada, e um novo parque fabril de medicamentos biológicos foram espalhados pelo Brasil. Ajudaram nesse processo, a inovação tecnológica na indústria, que passou a ser instalada com muita participação da Finep, CNPQ, BNDES, e o poder de compra indutor do próprio Ministério da Saúde.
Infelizmente toda essa visão descrita nesses exemplos foi interrompida junto com a democracia. E a consequência imediata foi a mudança da lei do pré-sal, das regras de fim de priorização de conteúdo nacional na cadeia dos petroleiros, a interrupção das parcerias de desenvolvimento produtivo na saúde e o desmonte das iniciativas, nesse sentido, do BNDES e do Ministério da Ciência e Tecnologia.
Outro fator, muitas vezes desprezado nas análises tradicionais de políticas públicas, mas cada vez mais valorizado, e que considero imprescindível para formulá-las ou analisá-las, são os atores que conduzem a atual política. O presidente não inspira confiança, visão de futuro e nem mesmo firmeza para qualquer ator econômico. Seus ministros, dado o passado e as ações do presente, na sua imensa maioria, ou provocam desprezo ou certo distanciamento por parte de atores fundamentais na economia. Já ouvi de interlocutores do setor produtivo, que conheci no período de gestão federal, a seguinte frase: “Nunca imaginei que eu iria fugir de audiência com um Ministro. Te falo, sinceramente, a gente prefere arrumar uma desculpa do que participar de conversas com alguns daqueles ministros. Dessa suruba queremos distância”.
Não existe projeto de desenvolvimento sem visão de futuro, coalizão na sociedade sobre os propósitos, políticas macroeconômicas que o estimule, atores e instituições que o conduza e novas regras e incentivos que o dispare. A coalizão PMDB/PSDB/parcelas do judiciário e mídia acabou com tudo isso! Mesmo entre aqueles que apoiaram o golpe, a melhor foto do fracasso foram as manifestações de ontem (26), convocadas pelo Movimento Brasil Livre (MBL), anunciadas pela grande mídia.
A política de terra arrasada tem como único esteio público comemorar os primeiros sinais de subida da ladeira que são bombardeados diariamente por analistas econômicos com seus microfones, flashes e câmeras de plantão. É aquela imagem do ciclista que depois de descer da ladeira capotando, viu sua bicicleta estropiar-se, seu capacete arrebentar-se, sua roupa rasgar-se toda, fraturas em todos os lados, mas comemora o fato de, mancando, estar passo a passo subindo a ladeira de novo.
Aqui não foi um acidente, mas sim uma política premeditada aliada a uma operação que pouco se importa das suas consequências para além dos flashes e dos seus alvos de condução coercitiva. Não há possibilidade de uma subida sustentável, em um ritmo mais acelerado, recuperando os estragos feitos e abrindo novas perspectivas, sem um novo governo, liderado por outros propósitos, sustentado em uma coalizão ativa da sociedade e com um novo pacto de legitimidade com o povo. Neste contexto, assusta a tentativa do atual governo em um cenário econômico tão perverso prejudicar ainda mais os trabalhadores e a aposentadoria pública.
O que a Câmara aprovou na última semana, e foi à sanção presidencial, não é um projeto de terceirização, é a destruição do capacete do ciclista, ao criar as mais variadas formas para que o trabalhador não tenha direito nenhum garantido. Um exemplo foi a abertura para trabalho temporário por 180 dias, prorrogáveis por 90 dias e intermitentes. Na prática, em alguns segmentos como o rural, o comércio, o turismo e empresas de alta densidade de mão de obra, como o telemarketing, acaba com o trabalhador registrado e seus direitos associados, já que é possível ter este trabalhador de forma intermitente (dois meses trabalha/recebe, dois meses para, dois meses trabalha/recebe) por um ano e meio. E a reforma da previdência em discussão acaba definitivamente com o projeto de aposentadoria pública no país.
Além dos impactos na economia e nos direitos, estudos mostram o quanto estas medidas resultam na saúde pública, prejudicando as pessoas e levando mais custos e necessidades para o sistema público. Vários estudos nacionais já mostraram a relação entre contratos temporários ou mesmo terceirizados, com o aumento de doenças ocupacionais, bem como o fim dos concursos públicos e os custos adicionais com terceirização da mão de obra a curto prazo.
Um estudo realizado pela Universidade de Oxford (nada bolivariana, portanto) ao acompanhar 10 mil pessoas aposentadas e compará-las com quem não se aposentou, tendo a mesma idade, mostrou que, ao se aposentar, a pessoa passa a recorrer 25% menos às consultas médicas, aumenta em 10% a atividade física e reduz transtornos relacionados a tensão do trabalho.
O povo na rua é uma oposição firme e pode estancar estes ataques e nos ajudar a criar novos caminhos. Estaremos todos concentrados às novas convocações da Frente Brasil Popular: dia 31 de março e 14 de abril.
Por Alexandre Padilha, médico, ex-secretário municipal da saúde na gestão de Fernando Haddad e ministro nas gestões Lula e Dilma. Texto originalmente publicado na Revista Fórum, replicado na Tribuna de Debates do 6º Congresso. Saiba como participar.