O Ministério da Saúde reconheceu nesta quinta-feira (14) que os casos de Covid-19 seguirão crescendo e que não há perspectiva no momento de estabilização ou redução do avanço da doença. A pandemia do coronavírus no Brasil agora vai chegando à fase da pauperização. Além da interiorização para as cidades de menor porte, a doença arrasa as periferias das metrópoles brasileiras, onde crescem não apenas os casos, mas as mortes decorrentes do Covid-19.
Em São Paulo, os 20 distritos mais pobres registraram aumento médio de 170% das mortes em rês semanas e acumularam 1.279 dos 4.874 óbitos ocorridos em toda a cidade até o último sábado (8). Apenas Marsilac, no extremo sul da cidade, não teve crescimento superior a 100% nos registros.
Esses bairros também são os que possuem menos leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), com um máximo de oito para cada 100 mil habitantes. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda 30 para cada 100 mil. Na capital paulista, 60% dos leitos de UTI estão concentrados em três distritos: Sé, Vila Mariana e Pinheiros, os dois últimos, de classes média e alta.
“Semanalmente o número de mortos, tanto confirmados quanto suspeitos, vocês veem que começa na zona central da cidade, mas vai aumentando muito na periferia, Brasilândia, Grajaú, Sapopemba, Cidade Tiradentes, mostrando o quanto isso está se disseminando na periferia e isso se concentra nas áreas que temos favela na cidade de São Paulo”, disse o prefeito Bruno Covas em coletiva no começo do mês.
Vulnerabilidade dos pobres agrava situaçào
Em entrevista à Rede Brasil Atual, o ex-ministro da Saúde Arthur Chioro manifestou preocupação com a situação. “É a efetiva ‘periferização’ das mortes de Covid-19, revelando toda vulnerabilidade da nossa população e a gravidade do quadro”, lamentou Chioro, médico sanitarista que comandou a pasta da Saúde entre 2014 e 2015, no governo Dilma.
Segundo o ex-ministro, os moradores de periferias são pessoas que vivem com piores condições sanitárias e têm estrutura habitacional muito mais frágil para poder fazer o isolamento preventivo ou quando houver casos na própria família. “Não têm condições, às vezes, de acesso a produtos de higiene, material de limpeza de roupas, poder separar talheres, roupas de cama. Às vezes dormem na mesma cama e, portanto, potencializa o processo de disseminação da doença”, detalha Chioro.
Para o médico infectologista e diretor do Sindicato dos Médicos de São Paulo Gerson Salvador, o crescimento do número de mortes em bairros de periferia evidencia a desigualdade não apenas social, mas também na assistência à saúde.
“A gente está vendo o número de mortos crescendo desproporcionalmente nos bairros mais pobres. Isso reflete uma iniquidade de acesso à saúde”, critica Salvador, lembrando que as regiões periféricas têm um contingente de pessoas que dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS).
“A gente sabe que outras doenças de transmissão respiratória, por exemplo a tuberculose, acometem de maneira desproporcional as pessoas que vivem na rua, em cortiços e em favelas”, observa. “O risco de transmissão da Covid-19 em pessoas que vivem nessas condições vai ser maior. A falta de assistência e as condições de vida acabam resultando num número desproporcional de mortes na população mais pobre”, aponta o médico.
Coronavírus se espalha pelas capitais
O quadro visto em São Paulo não é diferente do de outras capitais brasileiras. Em Recife, os bairros da Cohab e Ibura são vizinhos e estão entre os cinco da capital pernambucana com mais números de casos confirmados de Covid-19. O boletim epidemiológico da Secretaria Municipal de Saúde divulgado na terça aponta um dado mais preocupante: quando se fala em número de mortes, a Cohab só está abaixo de Boa Viagem. São 17 óbitos confirmados contra 24 em Boa Viagem. No Ibura, são nove mortes registradas.
Lídia Lins, do Coletivo Ibura mais Cultura, que tem feito ações solidárias na localidade, diz que vê muita gente nas ruas, aglomeradas. Para ela, além da falta de fiscalização e de campanhas educativas, no bairro vivem muitas pessoas que perderam a pouca renda que tinham.
“Muitas pessoas se encaixam no perfil socioeconômico do auxílio emergencial do governo federal, mas não conseguem acessar o benefício. Tem muita gente sem celular e por isso não consegue iniciar o processo também. Além disso, tem celular que nem comporta o aplicativo da Caixa Econômica”, completa. O resultado são ambulantes nas ruas, vendendo seus produtos para sobreviver enquanto aguardam o auxílio.
No Pará, que na quarta (13) registrou 10.344 casos confirmados de Covid-19, com 1.022 mortos, a rede hospitalar sobrecarregada da capital, Belém, já não dá conta do atendimento. Faltam leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para casos graves nos hospitais das redes pública e privada. O atendimento no Instituto Médico Legal e o serviço funerário estão em colapso. A prefeitura abre covas para sepultamentos coletivos no cemitério municipal do Tapanã, na periferia da cidade.
Em Alagoas, com 2.761 casos confirmados e 164 mortes até quarta (13), os três bairros de Maceió com maior número de mortes são da periferia. A informação consta em uma plataforma online do governo do estado. Quando observados os bairros com maior número de casos confirmados, vão para o topo da lista dois bairros nobres da capital: Jatiúca e Ponta Verde. Os bairros mais pobres, e com mais mortos, aparecem mais abaixo na lista de casos, revelando que na periferia está a maior taxa de mortalidade.
No Rio Grande do Sul, o coronavírus aos poucos chega à periferia de Porto Alegre. O avanço é ilustrado pela mudança no perfil da procura por hospitais que atendem a pacientes graves internados em UTIs para adultos.
Se antes a maioria era atendida no Hospital Moinhos de Vento e no Mãe de Deus, cujo tratamento ocorre apenas por convênio ou particular, na segunda (11), quatro a cada dez casos graves em UTIs estavam no Hospital Conceição, que atende sobretudo moradores da zona norte da Capital e da Região Metropolitana, pelo SUS. A seguir, está o Hospital de Clínicas, cuja maioria dos pacientes também recebe atendimento gratuito.
Cenário de risco acende alerta
O cenário acendeu o alerta para o risco do avanço do coronavírus em regiões mais vulneráveis, onde as chances de infecção são maiores por uma série de fatores – incluindo necessidade de trabalhar diariamente e consequente exposição a riscos, menor espaço na residência para isolamento, acesso mais restrito a água encanada para lavar as mãos e falta de dinheiro para comprar álcool em gel ou mesmo sabonete.
Os casos na periferia são, em geral, de gente que trabalha como babá ou empregada doméstica para pessoas da classe média ou alta que viajaram ao exterior, resume Jean Andrade, presidente e fundador da ONG Alvo Cultural. “A periferia ainda não sentiu os efeitos mais graves, mas o coronavírus já está chegando e as pessoas têm que se preocupar. A população idosa segue aquilo que o presidente manda e não usa máscara nem álcool gel. Quem tem mais cuidado são os jovens e os adultos”, descreve o ativista.
A prefeitura de Porto Alegre confirma a chegada do coronavírus à periferia e afirma que o cenário é consequência natural da transmissão comunitária. Mas a Secretaria Municipal da Saúde não divulga os bairros com maior incidência – a justificativa é evitar falsa sensação de segurança em regiões com menos casos.
A entrada da Covid-19 na periferia de Porto Alegre ocorre de forma lenta e gradual graças ao distanciamento social, segundo o médico epidemiologista e secretário adjunto de Saúde, Natan Katz. “Se, em algum momento, identificarmos maior quantidade de casos em um lugar comparado a outro, pensaremos em medicina específica no local, com uma mudança de flexibilidade diferente do resto de Porto Alegre”, ressalva o médico.
Críticas à ‘imunidade de rebanho’
O médico infectologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Evaldo Stanislau Affonso de Araújo, em entrevista ao Jornal Brasil Atual, critica autoridades que negligenciam as medidas de distanciamento social, se fundamentando na ideia de que é preciso deixar o vírus da covid-19 se disseminar para que supostamente as pessoas possam criar imunidade, a proposta batizada de “imunidade de rebanho”.
“Para a gente ter esse efeito protetivo de imunidade de rebanho, a gente teria que ter de 60% a 70% da população disposta. Só que para chegar nesse percentual, o custo em vidas e em saúde é inaceitável do ponto de vista ético”, contesta o médico.
“Esse não é um raciocínio normal. É muito mais próximo ao de um genocida, de uma pessoa desconectada da realidade, do que de um pensamento científico minimamente razoável. Porque está aí um pequeno percentual da população exposta – pelo que estudos demonstram em base populacional – e já há esse grande e inaceitável impacto na nossa saúde e na vida das pessoas”, conclui Araújo, em referência às mais de 13 mil mortes já registradas no país.
Da Redação