O Partido dos Trabalhadores vive a maior crise de sua história. Sabemos que a palavra crise comporta diferentes significados e desdobramentos. Pode anunciar o fim como pode abrir novas possibilidades. O primeiro passo para que a crise se torne um processo de gestação e crescimento é não perder a memória e confrontar a realidade presente.
É fundamental nesse momento recuperarmos a trajetória do PT nos 35 anos de sua existência, as forças políticas e sociais que possibilitaram o seu surgimento e expansão. Os militantes que fundaram e consolidaram o nosso partido vieram de origens diferentes, todos comprometidos com ideais de libertação e justiça social. Viemos dos que lutaram e sobreviveram às prisões, torturas e exílios da ditadura; do novo sindicalismo forjado nas lutas e greves históricas dos anos 1970; das comunidades eclesiais de base e das pastorais comprometidas com a vida, a dignidade da pessoa humana e o bem comum; do movimento estudantil, das escolas e universidades de onde vieram os professores e intelectuais empenhados na construção do projeto nacional brasileiro. É sempre bom lembrar que no ato fundacional e no processo de construção do PT estiveram presentes pensadores do Brasil como Antônio Cândido, Sérgio Buarque de Holanda, Henrique de Souza Filho, o Henfil, Mário Pedrosa, Hélio Pellegrino, Paulo Freire, Florestan Fernandes…
O processo de construção do Partido dos Trabalhadores foi a mais inovadora e instigante experiência político-partidária da história do Brasil e umas das mais surpreendentes do mundo. Fizemos um partido democrático, popular, plural, rigorosamente vinculado aos interesses dos pobres e das classes trabalhadoras, construído de baixo para cima, empoderando as bases.
Quando disputamos em 1982 as primeiras eleições do PT em Minas Gerais -experiência que acompanhei mais de perto, fui duas vezes Secretário-geral e Presidente do Partido – não tínhamos um único vereador em todo o Estado, nenhum prefeito, nenhum deputado. Elegemos naquelas eleições 1 deputado federal, 1 deputado estadual, 14 vereadores, nenhum prefeito.
Fomos ganhando espaços pouco a pouco e construímos o modo petista de governar; o modo petista de legislar; construímos a esplêndida militância petista. A nossa opção inaugural foi fazermos do Partido, para além das disputas eleitorais, um espaço pedagógico através de cursos de formação política, ciclos de debates, conferências e reflexões sobre o Brasil e os grandes temas políticos contemporâneos.
Nossos primeiros governos municipais e estaduais foram marcados pela ousadia, criatividade, competência, honestidade. Implantamos os orçamentos participativos, desprivatizamos os espaços públicos, invertemos prioridades, priorizamos as políticas públicas sociais, cuidamos dos mais pobres, democratizamos o poder, implantamos, em parceria com a sociedade civil e os movimentos sociais, os conselhos e, a partir deles, realizamos as conferências setoriais; viabilizamos políticas de segurança alimentar e nutricional, combatemos à fome e a desnutrição; participamos ativamente da consolidação do Sistema Único de Saúde-SUS; da Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS; procuramos cumprir as diretrizes constitucionais relativas à Educação, à Cultura, à proteção das comunidades tradicionais, ao meio-ambiente, ao princípio da função social da propriedade.
Os nossos parlamentares, minoritários nas Casas legislativas municipais, estaduais e nacional apresentavam importantes projetos de lei, sintonizados com os interesses da maioria da população defendiam princípios e valores éticos; eram incansáveis no combate à corrupção, trabalhavam em sintonia com a comunidade e os movimentos sociais.
É verdade que algumas vezes ficamos tão encantados conosco mesmos – porque a nossa política era basicamente correta e coerente- que cedemos as tentações de um certo sectarismo em relação aos que pensavam e agiam diferentes de nós. As vezes nos julgávamos donos da verdade e da ética.
Mas o fato histórico e objetivo é que demos uma contribuição extraordinária ao desenvolvimento político e social do Brasil, aqui incluídas as questões ambientais e culturais. Colocamos o debate político e as políticas públicas em novos e mais elevados patamares; cumprimos um papel civilizatório no País. Preparamos, assim, os caminhos para a eleição presidencial de Lula em 2002, depois das memoráveis campanhas anteriores e das Caravanas da Cidadania que nos possibilitaram e ao futuro Presidente um conhecimento mais aprofundado das diferentes regiões brasileiras.
Os 12 anos dos Governos Lula e Dilma promoveram grandes mudanças no Brasil, especialmente no campo social. Implantamos o mais vigoroso conjunto de políticas públicas voltadas para a inclusão social dos pobres, dos trabalhadoras e trabalhadores de baixa renda: o Fome Zero que cumpriu pelo menos uma parte considerável de seus objetivos em 2014, quando a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação-FAO retirou o Brasil do mapa da fome; o Bolsa Família e, vinculado a ele a rede de proteção social; o Luz para Todos, o PROUNI, o FIES, a criação de centenas de Institutos Federais de Educação Tecnológicas, as dezenas de novas universidades abertas ou expandidas através do REUNI; o PRONATEC, as ações do Plano Brasil Sem Miséria, o Minha Casa, Minha Vida com mais 2 milhões de moradias entregues e mais 3,7 milhões de moradias contratadas; as obras do Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC.
Essas mudanças e conquistas que levaram as sucessivas vitórias nas eleições presidenciais elevaram a autoestima, a confiança do povo brasileiro e serviram de inspiração e modelo para outros países; passaram aqui a ser, mais do que esquecidas, objetos de ataques diretos ou subliminares, de setores de oposição que encontram hoje em setores da mídia nacional e internacional o seu espaço mais vivo e operante.
A oposição, as críticas e questionamentos fazem parte do processo democrático. Nós que lutamos contra a ditadura sabemos o valor fundante da democracia, da liberdade e dos direitos fundamentais. Mas quando a oposição democrática, que se faz dentro das normas constitucionais e dos princípios republicanos, é substituída, dentro da pior herança lacerdista, pela afronta direta ás próprias instituições democráticas, é hora então de nos colocarmos em estado de guarda e vigilância. Querem os opositores golpistas, sempre fascinados pelo caminho mais curto e menos democrático para chegar ao poder, passar ao País o sentimento de que nada foi feito, que nada conquistamos, que somos um povo incapaz.
Vejo nesse ataque sistemático orquestrado pelas forças conservadoras que nunca respeitaram o povo brasileiro, mas que muito sabem aproveitar das nossas riquezas e colocá-las a serviço de seus interesses egoísticos e patrimonialistas, não o combate à corrupção que eles conhecem e praticam muito bem, mas o combate às políticas públicas sociais; o combate ao projeto nacional brasileiro, às possibilidades de afirmação efetiva de nossa soberania, serviçais que são dos interesses que se opõem ao desenvolvimento das potencialidades da boa e brava gente brasileira.
O Partido dos Trabalhadores enfrenta hoje dois desafios: um no campo externo no contraponto às forças direitistas que querem o retrocesso político e social do Brasil e a nossa submissão aos interesses do grande capital. O outro desafio se coloca no plano interno: acertar o Partido com os princípios, valores e compromissos que nos levaram a construí-lo.
Nós construímos o Partido dos Trabalhadores ao longo desses 35 anos, incorporando lutas e movimentos anteriores, com sangue, suor, trabalho e lágrimas, recuperando as palavras históricas de Winston Churchill, mas também com muita alegria, celebrações e esperança. Construímos o PT com milhares de filiados, milhões de militantes, apoiadores, simpatizantes, que jamais transigiram um milímetro de sua honestidade, que nunca cobraram ou receberam um centavo pelo seu voto, pela sua adesão às causas maiores que sempre defendemos. A todos presto uma homenagem aos trabalhadores e líderes sindicais que estiveram presentes na construção do PT em Minas, exemplares na sua dignidade: José Gomes Pimenta, o imenso Dazinho, Joaquim Oliveira, Milton Freitas, Maria Floripes do Nascimento, a doce e inesquecível Flor, Joaquim Carroceiro de Governador Valadares, Paiada de Araçuaí, Vicente Nica….
O PT deve hoje se dirigir a essa militância combativa e generosa, deve colocar-se diante de sua própria história, perante à memória dos que deram o melhor de suas vidas ao nosso projeto partidário. Penso que a melhor maneira de fazê-lo é resgatando a nossa identidade e o nosso projeto inaugural. Não foi o dinheiro que nos constituiu, não foram os recursos de empresas nas campanhas eleitorais; o que nos constituiu foi a força das nossas ideias, a determinação em fazermos do Brasil um país mais justo e solidário, a dedicação da nossa militância.
A História nos ensina que os testemunhos que atravessam os tempos, de Jesus de Nazaré ao Mahatma Gandhi, fundam-se na coerência entre o pensamento e a ação, é o que nós chamamos de integridade, de coerência, de coragem moral, de fidelidade a si mesmo. O PT, nesta encruzilhada histórica, para reafirmar o seu projeto histórico e confrontar os seus acusadores deve pôr em prática o que nós defendemos.
Nós defendemos no nosso projeto de reforma política, o fim das contribuições financeiras das empresas nos processos eleitorais. Vamos assumir perante nós mesmos e perante o povo brasileiro que continuaremos trabalhando pela reforma política que defendemos. Mas enquanto ela não for aprovada, nós vamos cumprir o que defendemos como se fosse uma norma partidária, a partir de agora, a partir das eleições de 2016.
A realidade que nos impõe agora confrontar e superar é que o PT aceitou as regras do jogo que sempre prevaleceram nos processos eleitorais e de disputa política em nosso país. O financiamento privado de campanhas eleitorais atingiu o paroxismo: impossível continuar quando “ as visões se clareando” nos fazem melhor compreender o contexto em que estamos inseridos. Os grandes grupos econômicos que irrigam as campanhas eleitorais, cobram as contrapartidas que sempre caem na conta da população. Vendo além, emergem as perguntas inevitáveis: esses recursos financeiros enormes não deveriam ser direcionados para melhorar os salários e as condições de trabalho dos trabalhadores dessas empresas? Não é o dinheiro que deveria estar na fonte do imposto sobre as grandes fortunas e heranças? No caso das empresas que realizam obras ou prestam serviços públicos não seria melhor do ponto de visto do bem comum, que esses recursos estivessem direcionados para que as obras e as políticas públicas sejam executadas com maior eficácia e realidade? O princípio da função social da propriedade deve ser levado também aos grandes ganhos e riquezas.
Além de recusar a contribuição das empresas, o PT deve tomar outras medidas que apontam na perspectiva da democracia interna, da ética e da transparência. Vejo de imediato duas: acabar com o Processo de Eleições Diretas-PED para escolha das direções partidárias. Aparentemente mais democrático e participativo, o PED não trouxe os resultados esperados. Tornou-se, pelo contrário, um fator de manipulação. Levamos para o interior do Partido os mesmos procedimentos condenáveis dos processos eleitorais. Através do uso indevido de recursos financeiros desqualificamos o PED com as filiações massivas de pessoas que muitas vezes nada sabem ou praticam do ideário petista. Eleitores que são conduzidos para votar com práticas que lembram os currais eleitorais e os chamados eleitores de cabresto.
Alem dessas práticas que não coadunam com os princípios fundacionais do PT, o PED praticamente extinguiu uma das nossas melhores experiências: as pré-convenções. Elas começavam com os encontros municipais, nas cidades maiores precedidas pelos encontros zonais, passavam pelos encontros estaduais e chegavam aos grandes encontros nacionais. Nessas grandes e inesquecíveis plenárias ocorriam debates, teses e propostas eram apresentadas. Nos intervalos, os delegados conversavam, se confraternizavam. Momentos inesquecíveis em que o saudoso Governador sergipano, Marcelo Deda revelava, além de sua esplêndida oratória, notáveis qualidades musicais. Olívio Dutra declamava poemas gauchescos!
A democracia pressupõe o encontro, a assembleia, o debate livre das ideias e projetos, a face a face, essenciais na construção dos consensos que asseguram a unidade partidária na diversidade e no pluralismo.
Outra questão que se coloca é a transparência na aplicação dos recursos partidários. O PT inovou na gestão pública, entre outras iniciativas, com o orçamento participativo. Seguramente, disporemos de menos recursos e vamos precisar novamente da contribuição dos filiados. O primeiro passo é chamarmos os filiados que contribuem financeiramente para participar das decisões relativas à aplicação dos recursos.
Desafia ainda o PT as grandes questões temáticas. Qual é o nosso projeto para o Brasil? Em 2022, menos de 7 anos, estaremos celebrando os 200 anos da Independência do Brasil. Que País queremos para nós, para nossos filhos, para nossos netos, para as gerações futuras? Pretendo pensar essas questões e compartilhá-las nos próximos textos.
Patrus Ananias é ministro do Desenvolvimento Agrário e militante histórico do PT