Quando Joaquim Nabuco afirmava que a escravidão permaneceria “por muito tempo como característica nacional do Brasil”, não imaginaria que, ainda hoje, trabalhadores estariam submetidos a condições análogas à escravidão. Talvez menos ainda imaginaria que uma parte da sociedade brasileira, minoritária, seguiria questionando o trabalho do governo federal que já libertou 40 mil brasileiros.
Talvez Nabuco estivesse falando sobre a sutileza cotidiana de desigualdades renitentes em nossa sociedade. Mas ele lembrava também o papel ativo de Constituições como “pedra de toque” da superação da escravidão. Foi assim que a Constituição de 1988 pontificou a dignidade do trabalhador não só em enunciados, mas em mecanismos que garantissem a sua efetividade.
Declarar o princípio da dignidade humana e da valorização do trabalho (artigos 1º e 7º) só faz sentido prático se acompanhado de punição. A Carta Magna fez esta previsão: a desapropriação mediante indenização pelo descumprimento da função social (artigo 184) ou mesmo a expropriação sumária sem qualquer indenização (artigo 243).
O segundo mecanismo, o da expropriação sumária de áreas onde forem localizadas a exploração de trabalho escravo, é mais recente (EC 81/2014). Fruto de ampla mobilização da sociedade civil, já enfadada da persistência anacrônica da casa-grande, ainda carece de regulamentação pelo Parlamento.
Já o primeiro mecanismo, que prevê a desapropriação-sanção, está regulamentado pela lei 8629/93 e é aplicado pelo Incra há décadas. Alguns, porém, insistem no argumento de que, caso o imóvel rural seja “produtivo”, mesmo mantendo trabalho escravo, estaria imune à desapropriação, pois propriedades produtivas seriam insuscetíveis de desapropriação (artigo 185).
Ora, como postulou o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau, a Constituição “não se interpreta em tiras, aos pedaços”, mas como um texto indissociável, na busca de uma sociedade justa, livre e solidária. Nesse sentido, desde 2005, com base em parecer de unidades setoriais da Advocacia-Geral da União, o governo federal interpreta que “imóveis produtivos” devem respeitar o patamar ético e humano, pois o centro do direito não é a produtividade, mas o ser humano.
Essa rápida argumentação acima é que sustenta a Instrução Normativa (IN) 83, do Incra, cuja aplicação tem sido questionada. E a base para essa norma é o cumprimento integral da função social da propriedade (artigo 5) nos componentes econômico, ambiental, trabalhista e de bem-estar.
A IN 83 apenas adotou o procedimento de utilizar como “prova emprestada” os autos completos do Cadastro de Empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à escravidão, nada mais. Com isso, o Incra visa diminuir o tempo e os recursos em processos de desapropriação para reforma agrária por trabalho escravo. Como ser contra?
Para chegar definitivamente ao século XXI, é preciso dar a brasileiros que tiveram sua dignidade violada a oportunidade de voltar a sonhar com um Estado Democrático de Direito que os enxergue e os respeite. E, assim, fazer cumprir plenamente a Lei 3.353/1888, mais conhecida como Lei Áurea.
Patrus Ananias é ministro do Desenvolvimento Agrário