A economista e socióloga Luiza Dulci, conselheira da Fundação Perseu Abramo e doutoranda em Ciências Sociais, é autora do artigo “Fatos e desdobramentos da reforma da Previdência rural” e conversou com o Brasil de Fato sobre os principais impactos da proposta de reforma da Previdência do governo Jair Bolsonaro (PSL) no campo e na cidade.
Em reação à proposta, milhões de brasileiros devem aderir à Greve Geral desta sexta-feira (14).
Segundo Dulci, o conjunto de mudanças apresentadas pelo governo favorece o agronegócio e o capital financeiro. Confira os melhores momentos da entrevista realizada durante o Seminário Terra e Território: Diversidade e Lutas, que ocorreu na última semana, na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em Guararema (SP).
Brasil de Fato: Qual o objetivo do seu artigo sobre as mudanças na Previdência rural?
Luiza Dulci: Eu quis trazer alguns elementos para pensar a reforma Previdência do governo Jair Bolsonaro, principalmente no que atinge os trabalhadores rurais. Comecei pelo modelo de Previdência criado na Constituição de 1988, que coloca a Previdência como parte da Seguridade Social, junto com a Assistência Social e a Saúde. É um modelo tripartite, com contribuição do Estado, dos trabalhadores e dos patrões, com responsabilidades compartilhada.
Qual o princípio que norteia esse modelo?
Que o Estado aporte uma parte dos recursos. Isso significa que a Previdência não tem que se autossustentar. O déficit da Previdência não é, na verdade, um déficit. O Estado tem um aporte constitucional. O sistema se resume assim: quem tem mais paga mais, que tem menos paga menos, e quem não tem nada paga. Então, tem que ver a situação socioeconômica dos trabalhadores rurais para ver em qual dessas categorias ele se encaixa. Mesmo se eles não têm como contribuir, eles têm que receber.
E como isso se aplica na prática no atual modelo?
O Benefício de Prestação Continuada (BPC) é um benefício voltado para esse tipo de cidadão. O trabalhador que contribuiu de alguma forma para o mercado de trabalho, mas não no tempo previsto na Constituição, e quando fica idoso ou deficiente, tem direito de receber esse benefício de um salário mínimo. É assim hoje.
Do ponto de vista dos assalariados rurais, esse é um ponto fundamental, porque eles raramente conseguem um contrato de trabalho formal. Antes de discutir a reforma da Previdência, para que esses trabalhadores tenham que contribuir, a gente precisa ver que tipo de contrato de trabalho está marcando esses trabalhadores.
Qual a realidade do trabalhador assalariado no campo hoje?
Com a reforma trabalhista, eles ficaram ainda mais marginalizados no mercado de trabalho. Antes de cobrar uma contribuição previdenciária, a gente teria que inserir eles neste sistema.
E a agricultura familiar?
É um outro sistema, digamos assim, que é contributivo porque tem uma previsão de desconto – 2,1% do que é comercializado na agricultura familiar vai para a Previdência. Com a proposta do Bolsonaro, as famílias teriam que contribuir com R$ 600 por ano. Isso é inviável para essas famílias agricultoras, porque têm intempéries climáticas, e esses trabalhadores têm dificuldade de conseguir crédito.
E isso ocorre justamente agora, quando estão sendo reduzidas todas as políticas públicas de apoio ao desenvolvimento rural, sobretudo de compras institucionais, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e uma série de políticas de crédito e juros, que também estão sendo reduzidos, esses trabalhadores terão mais dificuldade ainda de conseguir os R$ 600.
Qual seria a consequência imediata da proposta do Bolsonaro no campo?
Pagar R$ 600 por ano torna inviável a inserção deles no sistema. Na verdade, seria a extinção da Previdência rural para a maior parte das famílias agricultoras.
A proposta acaba com a proteção social do sistema?
Essa proposta do Bolsonaro tem dois pilares fundamentais. O primeiro é enfraquecer o sistema de Seguridade Social. Os recursos do Estado serão destinados para uma outra série de atividades. A outra perna desse modelo é o que tem sido chamado de capitalização.
Qual seria o impacto dela?
Se o Estado deixa de prover o sistema de aposentadoria, esses trabalhadores terão que se buscar o âmbito privado. Terão que se associar a bancos e outras empresas que vão fazer essa capitalização para a Previdência. Acontece que esses trabalhadores rurais e os agricultores familiares não conseguem se inserir num sistema de capitalização.
Eles, na maioria, não têm esse montante de capital disponível para fazer esse planejamento em um sistema de capitalização de médio a longo prazo, e a instabilidade no campo é grande. Eles serão retirados do sistema público e não vão conseguir se inserir no sistema privado.
Na direção oposta, o atual governo e o anterior estão se esforçando para manter os privilégios dos grandes latifundiários do agronegócio?
Existe o Refis, que são os programas de refinanciamento das dívidas, sobretudo dos grandes fazendeiros, e que estão sendo mantidos. No governo Temer [MDB], teve um grande Refis para os empresários. Agora está sendo mantido, e boa parte deste recursos são dívidas também com a Previdência.
Bolsonaro quer passar a ideia de que todos devem dar uma parcela de contribuição, mas é um sacrifício desproporcional, porque os trabalhadores mais pobres estão tendo que dar uma contribuição muito grande para cobrir o que eles chamam de déficit da Previdência,
Por outro lado, os grandes fazendeiros têm essas oportunidades de refinanciamento, de outros benefícios, e a manutenção das políticas públicas, como crédito, seguro, isenção para importação de agrotóxico e exportação de bens e matérias-primas. Eles continuam sendo beneficiados, enquanto os trabalhadores arcam com o prejuízo.
Por Brasil de Fato