Notícia do Brasil: o país dos patriarcas, reelegeu, no último 26 de outubro de 2014, uma mulher para Presidente da República. Atenção, leitor: reelegeu. Os interesses conservadores brasileiros concentrados numa reduzida porcentagem da população, herdeira de uma cultura escravocrata que não lhe permite compreender o exercício do poder público senão como uma extensão dos seus interesses familiares, enfrenta desde o fim da ditadura militar um impasse que não conhecia. Sofreu a quarta derrota eleitoral consecutiva.
Na história anterior do país não se registra um período tão prolongado em que uma força popular independente, ancorada numa sólida raiz social, disputa a condução dos rumos do país. Depois de 22 anos de construção, árdua, sob o fogo cerrado dos meios de comunicação familiares, em geral construídos ou consolidados à sombra da ditadura empresarial-militar (64/85), quando não enfrentando a violência da polícia e dos jagunços que vitimaram não poucos militantes, essa força popular – liderada pelo Partido dos Trabalhadores – alcançou o governo sob a liderança de um homem que sintetiza em sua trajetória de vida, a negação de todos os conceitos que sustentavam a cultura política do país até o início do século XXI. E, por outro lado, encarna as mais variadas faces daquilo que o mestre Florestan Fernandes definia como os “de baixo”: Luiz Inácio Lula da Silva.
Em outubro de 2002, o Brasil elegeu Presidente da República, para o exercício do mando, portanto, esse homem que vem do mundo do trabalho, nascido na região mais pobre do país, cuja escolaridade não passou do curso técnico do SENAI. Tal fenômeno ocorreu num país em que o exercício do mando foi historicamente privativo dos senhores de terras e gentes e o trabalho produtivo destinado a pretos e pobres. Passados quatro anos de exercício do mandato ele se reelegeu e ao fim de oito anos deixou o cargo como o Presidente mais popular da História do país. Os adversários não imaginavam o que estava por vir.
A ampla força social, liderada por Lula e pelo Partido dos Trabalhadores, lançou como candidata à Presidência da República uma mulher. A militante da resistência à ditadura militar e da reconstrução democrática Dilma Rousseff. Num país de cultura patriarcal, oligárquica, machista era inimaginável tamanha ousadia. Henfil, se estivesse vivo, seguramente encontraria a melhor definição: “Nessa marcha, vamos acabar caindo numa democracia!” Essas quatro vitórias se converteram em realidade porque estão ancoradas numa experiência de construção política que as elites conservadoras não conseguiram apreender, processar ou reprimir, seja no âmbito da formulação do pensamento nas academias, seja na formulação da tática política adequada para enfrentar o novo ator que conquistou espaço na cena pública. A reprodução da tática golpista, via meios de comunicação, que resultou nas crises de 1954 – com o suicídio de Vargas – e, dez anos depois, com o golpe de abril de 1964, revela que o pensamento de direita no Brasil está defasado em 50 anos.
O ódio que as elites conservadoras destilam contra o PT não é gratuito como se poderia pensar. Trata-se de um ódio lúcido. Elas não devotam esse ódio ao Partido por seus vícios. Aliás, vícios adquiridos da cultura política conservadora que foi absorvendo ao longo dos seus 35 anos de História e 12 anos de exercício de governo. Elas devotam esse ódio ao PT por suas virtudes. Tratam de destruí-lo porque ele se afirmou como um instrumento de mudanças sociais – ainda que tímidas, mas efetivas – num ciclo de disputas sociais e políticas emolduradas por uma Constituição democrática, de cujo debate o PT participou ativamente. A substituição dos Partidos conservadores pelos monopólios de mídia, na formulação do projeto tático e estratégico da direita, no Brasil, anulou a eficácia e a legitimidade dos organismos partidários e produziu uma hipertrofia do protagonismo dos meios de comunicação familiares que veem no PT – que resiste a esse processo – um inimigo a aniquilar.
A ferocidade dos ataques à Presidente Dilma e ao PT, na campanha de 2014 passará como um registro da completa ausência de escrúpulos dos seus adversários, que ultrapassaram qualquer dos limites de civilidade, seja no tratamento da figura pública que ocupa o posto de Presidente da República, e busca a reeleição, seja no necessário padrão civilizado de tratamento a uma cidadã merecedora de respeito. A têmpera com que Dilma enfrentou a pancadaria, é eloquente sobre sua história pessoal como militante. A selvageria dos seus adversários revela as faces de uma cultura social e política que o país se esforça para deixar para trás.
Ainda no século XIX o pensador alemão Friedrich Engels advertia: “uma sociedade que não liberta suas mulheres, não se libertará a si mesma.” O Brasil que emergiu nos últimos doze anos saiu do mapa da fome e se converteu na sétima economia do mundo, com vitórias inéditas no combate às desigualdades sociais e regionais, com pleno emprego, cresceu distribuindo renda, cresceu em meio a uma crise severa e prolongada que castiga as grandes economias do mundo, deve preparar-se para a batalha dos valores: da afirmação da democracia, da tolerância com as diferenças e com os diferentes, da solidariedade, da cultura da paz e da sustentabilidade. E, dirigido por uma mulher sobrevivente das lutas contra a ditadura, e militante da redemocratização, incorpore à agenda do Brasil os grandes desafios da condição feminina numa sociedade que ainda cultiva de maneira disseminada o patriarcalismo, o machismo e o sexismo como virtudes. Converter os avanços econômicos, sociais e políticos em conquistas culturais da sociedade e oxigenar o ambiente social opressivo em que vivemos nos últimos anos é um dos principais desafios dos novos movimentos sociais particularmente os movimentos de juventude.
Pedro Tierra é Secretário de Cultura do Distrito Federal