I. Soa como um convite para festejar seu próprio funeral. Num país capaz de tudo converter em caricatura, em curto lapso de tempo, as elites brasileiras fizeram da democracia um simulacro nas eleições de 2018 e nesses idos de março de 2019, 55 anos depois, levam a nação a encenar uma grotesca farsa de si mesma.
Despem-se agora da toga necessária para conduzir as sistemáticas violações da Carta de 1988: desde 2016, depuseram a presidenta eleita com 54 milhões de votos, sem apresentar provas de qualquer crime que tenha cometido. Substituíram-na por uma figura sinistra, personagem de novelas de terror. Deram-lhe o suporte necessário para mantê-lo de pé por dois anos, à frente de um governo ilegítimo. Hoje preparam para ele um desfecho melancólico: a prisão, talvez, o esquecimento com certeza. Por fim, produziram um processo eleitoral em que o líder nas pesquisas foi encarcerado e mantido fora da disputa para abrir passagem ao mais genuíno produto dos porões do passado que a sociedade não conseguiu sepultar: um capitão reformado que despreza a democracia, defende a ditadura, celebra a tortura como método de tratamento dos adversários e tem como herói um torturador responsável por dezenas de mortes.
No declínio da ditadura civil-militar (1964-1985) quando, roída por suas próprias contradições e sob pressão das mudanças internacionais, particularmente a nova orientação dos EUA sob a presidência de Jimmy Carter que se afastou das ditaduras que seu país disseminara pelo continente, e formulou o discurso de respeito aos direitos humanos, os generais iniciaram o desmonte dos centros de tortura sob seu direto controle.
A escória, que servira no submundo da repressão aos opositores políticos do regime, se viu sem emprego. Não havia mais ambiente para o ofício a que se dedicava aquela gente desde março de 1964: prender, torturar, matar e fazer desaparecer militantes dos movimentos sociais que se contrapunham à ditadura. Esses esbirros, alguns afastados dos postos que ocupavam nas delegacias dos Deops nos estados, reformados em suas carreiras militares nas Forças Armadas ou nas Polícias Militares ensaiaram alguma resistência, pretensamente política, por meio de atentados terroristas a bancas de jornais, instituições civis e religiosas que desempenhavam um papel importante na luta pela restauração do Estado Democrático de Direito, como OAB, ABI, CNBB. O resultado foi um isolamento maior.
Homens práticos, trataram então de alugar sua mão de obra especializada em tarefas como “limpeza de terra” para grileiros no campo e na periferia das grandes cidades, formar grupos de extermínio a serviço de comerciantes nas periferias, entrar no ramo da venda de proteção, execuções de concorrentes, desafetos atuantes na contravenção e, com o tempo, montar seu próprio negócio.
Essa é a origem do mecanismo em que atua gente como Ronnie Lessa, morador de condomínios como o “Vivendas da Barra”, Élcio Queiroz ex-PM e PM reformado e Alexandre Mota de Souza, em cuja casa foram encontrados 117 fuzis novos, com marcas gravadas das forças armadas dos Estados Unidos, à espera dos canos para serem montados: as milícias. Uma realidade no mundo do crime organizado que, a exemplo da contravenção em outros tempos e ao tráfico de entorpecentes hoje, estabeleceu íntimas ligações com a disputa política no Rio e no país. Esse submundo, essa “Economia Política do Crime” se constituiu, nos últimos anos, e abriu espaço a poder de violência e dinheiro para sua representação nas instituições da República, financiando eleições e sustentando mandatos.
II. Nos últimos dias assistimos a uma espécie de streap-tease simbólico: debaixo da toga, emerge a farda. Afinal ela já encontrou o espaço adequado e se instalou desde algum tempo numa sala ao lado do presidente da Suprema Corte para evitar surpresas ao longo do processo eleitoral. A proximidade é tamanha que o presidente da Corte recentemente produziu em palestra aquela declaração constrangedora na qual rebatizou um golpe de Estado flagrante contra um presidente legítimo, perpetrado pela força das armas a serviço dos interesses dos EUA, como demonstra farta documentação colhida nos próprios arquivos oficiais americanos e à disposição na WEB, de “movimento de 1964”… Como sempre, como a memória das instituições é visivelmente frágil, vale lembrar: Quatro anos depois de desferir o golpe de Estado de 1o de abril de 1964, a coalizão civil-militar que depôs o presidente eleito João Goulart, ainda no primeiro ano, fechou o Congresso, aboliu os partidos políticos, interveio em sindicatos e associações de trabalhadores, cassou mandatos e exonerou ministros nos tribunais. Em dois anos viu-se isolada de expressivos segmentos sociais, mesmo daqueles que haviam apoiado o golpe na primeira hora.
A decisão tomada pelo alto escalão das Forças Armadas foi aprofundar o caráter repressivo do regime, na tentativa de deter as manifestações dos movimentos sociais, particularmente o movimento estudantil, no Rio e em São Paulo e outras capitais do país, mas também as primeiras mobilizações do movimento operário, como ocorreu em Osasco e Contagem. Além disso, ainda que de maneira débil, sobreviviam manifestações de oposição dentro do Parlamento que havia sido severamente desfigurado em sua composição pelas cassações e agredido em suas funções institucionais, posto sob controle dentro de duas siglas criadas pelo próprio regime: Arena (Aliança Renovadora Nacional) e MDB (Movimento Democrático Brasileiro).
No 13 de dezembro de 1968 o marechal Costa e Silva decretou o Ato Institucional no 5. Tratou-se, como se definiu na época, de “um golpe dentro do golpe”, uma aberração jurídica composta por apenas doze artigos. Que abre anunciando:“São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições Estaduais(…)” (art. 1º). Para já na linha seguinte deixar claro que: “O presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em Estado de Sítio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo presidente da República” (art. 2o).
O texto incorpora em artigos seguintes a expressão “(…) sem as limitações previstas na Constituição” – note-se que a Constituição de 1967 era obra dos próprios militares – como fórmula explícita para anular de fato o anúncio do art. 1o e abrir portas e janelas para o arbítrio dos generais, no topo da hierarquia do Estado que fora tomado pela força das armas e – abaixo deles – os tiranetes de província, os funcionários obscuros, os censores, qualquer personagem dotado de ínfima parcela de poder, no último guichê do serviço público, no último município do país.
Essa monstruosidade jurídica não se esgota em si mesma. Além do impacto imediato destinado a responder a uma situação de isolamento social e político da ditadura, no final daquele ano turbulento, abre espaço para toda a sorte de arbitrariedades. Legaliza assassinatos e “desaparecimentos”, radicaliza a censura à imprensa e às atividades culturais, institucionaliza a tortura como método de tratamento dos opositores, dissemina silenciosamente, a partir daí, no aparelho de Estado e, por consequência, na sociedade, um conjunto de hábitos e comportamentos duradouros, uma “cultura” de Estado assentada no autoritarismo e no arbítrio.
Essa aberração institucionalizada duraria formalmente por dez anos. Foi derrubada em 1o de janeiro de 1979 pela Emenda Constitucional no 11 assinada pelo quarto ditador, o general Geisel. Formalmente. Os efeitos explícitos foram cedendo sob o combate dos setores populares que expunham nas ruas seus anseios por uma democracia sem adjetivos, mas não foram abolidos.
Os efeitos invisíveis, esses sedimentados no imperceptível comportamento cotidiano, não se tornaram alvo das preocupações dos setores mais avançados da sociedade, não ocuparam espaço relevante na agenda da democratização, não se converteram em bandeiras. A dobradinha histórica entre a farda e a toga é antiga e eficaz. Ancora o passado que nos persegue, que se reinventa para atormentar o presente.
Seus efeitos permaneceram aí alimentando o mais terrível dos sintomas da doença social que nos aflige: a indiferença. A indiferença diante das desigualdades sociais, a indiferença diante da violência cotidiana no espaço familiar e no espaço público, a indiferença diante da dor do outro, a indiferença diante da política: essa é a sementeira na qual se cultivam as raízes do fascismo social que ameaça a sociedade brasileira e deu substrato à eleição de um representante daquela escória, contra a qual combatemos ao longo desses trinta anos de reconstrução democrática, agora ameaçada no simbólico e no exercício cotidiano quando o coveiro da democracia nos convida a festejar nosso próprio funeral.
Pedro Tierra (Hamilton Pereira) é poeta e ex-presidente da Fundação Perseu Abramo