O número de lares sem renda do trabalho bateu recorde no país no primeiro trimestre deste ano, superando o pior momento da recessão de 2014-2016. É que aponta um levantamento da consultoria IDados a pedido do jornal ‘Valor Econômico’, publicado nesta terça (19).
Segundo a pesquisa, feita a partir de microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil tinha 17,2 milhões de domicílios com moradores sem renda de trabalho no primeiro trimestre, o que corresponde a 23,5% dos lares.
Quando comparado ao quarto trimestre de 2019, o total de domicílios sem renda do trabalho cresceu em um milhão de unidades (6,5%), o que também é um recorde na série histórica da pesquisa, iniciada em 2012. Por fatores sazonais, como a dispensa de pessoal temporário, o primeiro trimestre costuma registrar piora do indicador. Desta vez, porém, o ritmo foi acima da média histórica.
A proporção de lares sem renda do trabalho cresceu significativamente durante a recessão provocada pelo esforço de desestabilização do governo Dilma, em 2015. No primeiro trimestre de 2012, o indicador era de 18,2% do total de domicílios do país. No primeiro trimestre de 2018, a proporção atingiu 22,4% e, desde então, mantinha-se relativamente estável.
Autor dos cálculos da consultoria IDados, o economista Bruno Ottoni disse ao jornal que os impactos da pandemia de coronavírus foram capturados apenas parcialmente nos dados do primeiro trimestre. As medidas de isolamento social começaram a ser tomadas só na segunda quinzena de março.
Mesmo assim, chamou a atenção dele a redução da população ocupada como serviços domésticos, em alojamento e alimentação e nos chamados “outros serviços”, que inclui manicures e cabeleireiros. Áreas com grande concentração de trabalhadores informais.
Bruno acredita que os efeitos da crise são evidentes no número de pessoas que deixaram o mercado de trabalho no período: 1,851 milhão de pessoas migraram para a inatividade no primeiro trimestre, um volume atípico, o que poderia já estar relacionado com a pandemia.
“Vários fatores sugerem que já pode ter impacto da Covid-19 nos resultados do primeiro trimestre, como a própria queda da taxa de informalidade, em um momento que se poderia esperar um aumento dela”, disse o economista. Para ele, a tendência é que o indicador piore mais nos meses seguintes, refletindo a perda esperada de postos de trabalho durante a pandemia.
A taxa de informalidade recuou em todas as grandes regiões do Brasil no primeiro trimestre, em relação ao quarto trimestre de 2019. No entanto, o resultado não foi consequência de uma melhora na qualidade do emprego, mas sim da perda de ocupação dos trabalhadores que atuavam na informalidade.
“A informalidade diminui nesse caso não é porque existem hoje muito mais trabalhadores com carteira, é porque esses trabalhadores perderam a ocupação que tinham, não mudaram de trabalho informal para formal”
É o que afirma Adriana Beringuy, analista da Coordenação de Trabalho e Rendimento do IBGE. A taxa de informalidade para o Brasil ficou em 39,9%, abrangendo 36,8 milhões de trabalhadores ocupados. “A redução de conta própria e sem carteira (no setor privado) contribuíram para a redução da informalidade. Todas as regiões mostram retração na taxa de informalidade”, ressaltou Adriana.
“A informalidade diminui nesse caso não é porque existem hoje muito mais trabalhadores com carteira, é porque esses trabalhadores perderam a ocupação que tinham, não mudaram de trabalho informal para formal”, completou.
O recuo do desemprego em 2019 havia sido puxado pelo aumento da informalidade, que atingiu 41,6% dos trabalhadores, alcançando 38,4 milhões de pessoas. Segundo a Pnad, o trabalho informal é a principal ocupação da população de 11 estados brasileiros.
Adriana evitou relacionar a redução na informalidade com o impacto da pandemia no mercado de trabalho. No entanto, alguns itens da pesquisa já sinalizam as consequências da Covid-19 sobre a perda de emprego no período pesquisado. “A Pnad mostra o começo do impacto extraordinário por conta do início do isolamento social. O impacto maior a gente vai ver quando tiver os dados de abril”, explicou a pesquisadora.
Pandemia aumentará miséria
Em comentário na Rádio Brasil Atual nesta terça (19), Fausto Augusto Junior, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), chama a atenção para o fato de, entre 2017 e 2019, a extrema pobreza continuar se agravando, apesar do leve crescimento do PIB no período. O que aponta para o aumento da concentração de renda e ampliação das desigualdades sociais.
No ano passado, mais especificamente, Fausto atribuiu o crescimento da extrema pobreza ao estrangulamento dos programas sociais pelo governo Bolsonaro, em especial o Bolsa Família. E prevê um quadro ainda mais grave em 2020. “O que a gente vai assistir a partir da pandemia é um crescimento muito acelerado do número de pobres. Em especial, a partir de junho, quando, a princípio, o auxílio emergencial deve se extinguir, de acordo com o governo”, disse o diretor do Dieese.
Mesma opinião tem o sociólogo Rogério Barbosa, pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo (USP). Em entrevista ao portal ‘DW Brasil’, ele apontou como principal motivo para o aumento do número de brasileiros em pobreza extrema as deficiências na execução do Bolsa Família.
Em 2019, o programa chegou a ter uma fila estimada em mais de um milhão de famílias que estavam aptas a receber o benefício, mas não eram incluídas pelo governo. A esse problema se somam a redução das equipes que fazem a busca ativa de possíveis beneficiários e a ausência de reajustes anuais do benefício para repor a inflação. Além disso, o 13º benefício do Bolsa Família, pago de forma excepcional em 2019, não foi captado pela Pnad Contínua do IBGE.
Para Barbosa, embora 2019 tenha sido “microscopicamente melhor” que 2018 em termos de renda e desigualdade, há cinco anos o país não faz o suficiente para combater a pobreza. “Se olharmos somente os gráficos da renda média e da desigualdade, parece que temos uma boa notícia. Mas é importante olhar ao longo de toda a distribuição [da população]: os mais pobres continuaram perdendo em 2019, como vêm perdendo sistematicamente desde 2015”, disse, apontando para uma “recessão duradoura” na base da pirâmide, que não foi superada e não será neste ano, em função da pandemia.
O economista Marcelo Neri, diretor do FGV Social, centro de pesquisa dedicado ao desenvolvimento inclusivo, chama a atenção para a parcela da população que fica no meio da distribuição da renda, composta por pessoas que são pobres, mas não se qualificam para receber o Bolsa Família. “Esses são invisíveis aos olhos do Estado. Após [o final] da concessão do benefícios emergenciais pela pandemia, serão muito afetados”, afirma.
“Deve haver uma piora da distribuição de renda, porque quem é mais afetado é a população da periferia, que normalmente está alocada em trabalhos mais vulneráveis e está perdendo o emprego com mais facilidade neste momento”, explica. “E outras variáveis vem junto, como a piora de diferença salarial entre gêneros, porque o momento começa a desfavorecer inúmeras reivindicações”
Desemprego recorde
Uma estimativa da Fundação Getulio Vargas (FGV) já prevê que a taxa de desemprego pode chegar a 18,7% no país ao final deste ano. Seria a maior desde os anos 1980, quando começou a pesquisa do boletim macroeconômico do Instituto Brasileiro de Economia da FGV (Ibre-FGV). Esses quase 19% representariam 19,6 milhões de brasileiros sem trabalho algum ao final deste ano – sem contar os que sequer entram na estatística porque simplesmente desistem de procurar uma vaga.
Segundo a Pnad, o trimestre encerrado em março registrou 12,2% de taxa de desocupação, ante 12,7% no mesmo período em 2019. Isso representou 1,2 milhão a mais de desocupados, antes dos efeitos das medidas de isolamento social.
Perto da metade dos desempregados (45,5%) estava procurando trabalho de um mês a menos de um ano. Outros 3,1 milhões de pessoas (23,9%), há dois anos ou mais. Ainda segundo a Pnad, há 4,8 milhões de desalentados no país – pessoas que, por motivos diversos, desistiram de procurar trabalho.
A estimativa do governo federal é de perda de três milhões de postos de trabalho formais este ano. O que já seria a maior destruição de vagas com carteira assinada já registrada no país, superior inclusive ao que se viu nos três anos da última crise, entre 2015 e 2017.
A coordenadora do departamento de Economia do Insper, Juliana Inhasz, alerta ainda para a perspectiva de agravamento da desigualdade: “Deve haver uma piora da distribuição de renda, porque quem é mais afetado é a população da periferia, que normalmente está alocada em trabalhos mais vulneráveis e está perdendo o emprego com mais facilidade neste momento”, explica. “E outras variáveis vem junto, como a piora de diferença salarial entre gêneros, porque o momento começa a desfavorecer inúmeras reivindicações”.
A crise do coronavírus já levou 1,5 milhão de brasileiros para o seguro-desemprego. Entre março e abril, houve alta de 31% nos pedidos na comparação com o mesmo período do ano passado, conforme dados do Ministério da Economia. Quem não perdeu o emprego teve salário e jornada reduzidos. Mais de sete milhões de trabalhadores estão sob esse novo regime, e recebem, em média, R$ 752 mensais.