A crise no capitalismo tem sido o modo pelo qual o sistema busca ultrapassar sem limites os entraves no seu modo próprio de gerar e acumular riqueza. Logo no início do século 21, a crise das empresas “ponto com” (bolha da internet) resultou como resposta a introdução de um novo e promissor modelo de negócio que contribuiu para superar o movimento especulativo de altas das novas empresas de tecnologia da informação e comunicação (TIC) assentadas na internet desde 1994.
Após o ano de 2001, muitas empresas “ponto com” sofreram significativo processo transformação, com a quebra e o desaparecimento de algumas, bem como a venda e fusão de outras. Pela centralização e concentração do capital ocorrida no segmento econômico emergente, empresas estadunidenses como Google e Facebook passaram a enriquecer consideravelmente através do modelo de negócio assentado na remuneração dos conteúdos através de cliques na internet. Negócios e dados do mundo das empresas ponto com não caminham sem passar por ali.
Com isso, o avanço extraordinário das receitas baseado em anúncios que recompensavam comercialmente a isca do clique trouxe a disseminação viral de informação e, cada vez mais, desinformação. Em consequência, tanto a difusão da cultura de ataques maliciosos e do ódio efervescente, do assédio online e das invasões praticados por empresas e Estados na vida particular dos indivíduos. Também a polarização crescentemente internalizada pela web nas ideias e qualidade do discurso do formato no aparente design benevolente colocado a serviço lucrativo de empresas que operaram o quase monopólio da estrutura de mercado.
Acontece que, sem qualquer regulação, ademais o extraordinário lucro do modelo de negócio das empresas de tecnologia de informação e comunicação, o mundo passou a se encontrar diante da vigilância de negócios gerados por um capitalista monopolista de negócios sem controle.
Na busca incessante de lucros, em meio ao processo de financeirização da riqueza e a selvageria da lógica dos acionistas, a mais importante alteração tecnológica na produção e transmissão do conhecimento encontra-se profundamente ameaçada a serviço de ricos e poderosos que destroem também atualmente a democracia na política.
Desconstruindo Gutemberg
A invenção da máquina de impressão em tipos móveis por Johannes Gutemberg, há mais de cinco séculos, em 1493, tornou-se uma das principais mudanças mundiais ocorrida em todo o segundo milênio. Ela fez parte do período definido por Renascimento Cultural transcorrido na Europa entre os séculos 14 e 16, com intenso intercâmbio de conhecimento em várias áreas artísticas e das ciências, como na astronomia, física e navegação.
Em síntese, a revolução que permitiu superar o tempo natural representado pela forma física e biológica dos organismos vivos, sem validar o uso da técnica e conceber o universo como algo composto de uma mesma matéria uniforme, suscetível à corrosão e à finitude (terrestre e celeste).
A revolução técnica de Gutemberg levou ao avanço da noção do tempo histórico pelo qual a humanidade difundiu cultura e narrativa fundamental para o desenvolvimento da consciência histórica, com registros de acontecimento, conforme havia se expressado Heródoto, o “pai da história” na antiga Grécia. A modernidade que se constituiu em torno da renascença, revolução científica e reforma religiosa do protestantismo teve enorme impacto com a nova técnica de produção e reprodução de textos e livros.
Através dos caracteres móveis e a prensa de imprimir, a cópia manuscrita foi superada, assegurando a circulação massificada de textos e livros. Até então, os registros eram feitos por monges, alunos e escribas, cujo trabalho era longo no preparo e elevado custo, inacessível, em geral, à maioria da população.
Atualmente, as bases materiais que permitiram a modernidade da economia baseada no conhecimento e na disseminação em massa da aprendizagem sofrem inegável transformação gerada pela revolução das tecnologias de comunicação e informação associadas à computação e internet.
Assim como o processo de produção e difusão do conhecimento foi acelerado pela invenção da máquina de impressão, as tecnologias de informação e comunicação multiplicam ainda muito mais, tornando-as tempo real.
Mas sem regulação, a vigilância e o controle imposto pelo modelo de negócios do capitalismo monopolista pode inverter a modernidade do renascimento do passado na pós-modernidade que retrocede à submissão como se estivesse no mundo antigo e medieval. O paradoxo do tempo natural, não mais histórico.
Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, ambos da Universidade Estadual de Campinas