Decorrido mais de dois anos da pior recessão econômica, aprofundada por inegáveis evidências de partidarização do poder jurídico e de descrédito do sistema político, a tarefa da reconstrução da nação voltou ao centro de uma agenda comprometida com o futuro do Brasil. Tendo por pressuposto que o futuro se constrói a partir do presente e por ser obra de natureza coletiva, superior ao âmbito das iniciativas de interesse privado, sejam individuais, sejam corporativas, o foco passa a ser a reconstrução pela via política.
Para tanto, a vida pública nacional deveria deixar de ser, cada vez mais, mera expressão do poder econômico enquanto decorrência do desmanche da estrutura produtiva herdada desde a segunda metade do século passado. Por conta disso, antigos atores políticos associados ao ciclo da industrialização nacional, como a burguesia e o proletariado da manufatura e, ainda, a classe média assalariada, encontram-se substituídos pela emergência de novas forças sociais descomprometidas das formas tradicionais de fazer a política representativa.
Trava-se, nesse sentido, uma “batalha” entre a velha e a nova estrutura da sociedade que resulta das profundas transformações na infraestrutura do sistema produtivo, cujos efeitos mais significativos podem ser identificados na superestrutura representada por suas instituições e regras. Isto é, partidos, sindicatos, associações, religião, regras de convivência, entre outras instituições desconectadas do sentido de nação.
Guardada a devida proporção, o ciclo político da Nova República (1985-2016) encerrado por um trágico golpe político, encaixa-se mais à experiência da República Velha, quando o país viveu uma tardia transição da longeva sociedade agrária escravista para o novo modo de produção capitalista. Naquela época, especialmente entre as décadas de 1890 e 1920, a vida pública se complexificou substancialmente com o surgimento de novas forças sociais, apesar da política da República Velha ter sido conduzida por atores que buscavam se metamorfosearem de antiquados senhores de escravos em modernos capitalistas. Não deu muito certo, com governos destoantes do sentido de nação apontado por novas forças sociais identificadas com os anseios da sociedade urbana e industrial, não mais agrária.
Por conta disso que os governos do ciclo da Nova República, inspirado pela herança dos atores da sociedade urbana e industrial, podem ter representado crescente dissintonia com as novas forças sociais que emergem da passagem para a sociedade de serviços. Atualmente, o curso da substituição das antigas cidades agrárias e industriais pelas de serviços traz consigo uma nova leva de forças sociais que seguem ainda desorganizadas frente ao desamparo das instituições tradicionais.
Incrivelmente, as igrejas, sobretudo as neopentecostais, e o crime organizado, parecem mais conectados aos anseios oriundos das novas forças da sociedade de serviços em transformação. Ao mesmo tempo se entrelaçam às instituições existentes da velha sociedade industrial, cada vez mais presentes nos atuais sistemas públicos de segurança, judicial, legislativo e executivo.
O resultado tem sido o aprisionamento da vida pública ao rebaixado princípio da economia para a organização da sociedade. Com isso, a valorização fundamental passa a ser o imediato que emana dos anseios de mundo do dinheiro, especialmente aquele improdutivamente gerado pela desmaterialização das relações de produção.
A reconstrução da política tem por desafio, a remodelização de sua superestrutura ancorada na estrutura da sociedade que emerge das modificações profundas do sistema produtivo nacional e suas interlocuções com o mundo. Mas para isso, o presente da economia impõe base de geração da riqueza que seja incapaz de abandonar a atualização da infraestrutura da manufatura.
A incorporação na política das novas forças sociais recoloca parâmetros superiores de organização da vida pública. A convergência entre o velho que resiste e o novo que emerge sem dominância na passagem para a sociedade de serviços recoloca papel chave à reconstrução da nação pela via política em novas bases.
Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, ambos da Universidade Estadual de Campinas.