A inação do governo diante dos efeitos econômicos e sociais da pandemia pode custar muito caro para as micro, pequenas e médias empresas. Se o ministro da Economia, Paulo Guedes, foi generoso com os bancos, que aquinhoou com R$ 1,3 trilhão logo no início da crise, postergou o quanto pode a abertura dos cofres para o segmento, que em 2019 representava 99% dos negócios formais no país. Agora, são 99,8% das mais de 700 mil empresas que fecharam as portas desde o início da pandemia, segundo o IBGE.
No início de abril, o ministro-banqueiro chegou a prometer crédito para as micro e pequenas empresas. “Começamos agora a dar dinheiro na veia, diretamente para as empresas”, garantiu. Mas, depois se soube, já na infame reunião ministerial de 22 de abril, Guedes foi sincero sobre o que realmente pensava: “Nós vamos ganhar dinheiro usando recursos públicos para salvar grandes companhias. Agora, nós vamos perder dinheiro salvando empresas pequenininhas”.
No final de março, o Banco Central (BC) anunciou uma linha de crédito de R$ 40 bilhões para as companhias pagarem os salários dos funcionários, o Programa Emergencial de Suporte ao Emprego (Pese), direcionado a empresas com receita bruta anual entre R$ 360 mil e R$ 10 milhões. A pesquisa do Ibge ‘Pulso Empresa: Impacto da Covid-19 nas Empresas’ revelou que apenas 12,7% das empresas tiveram acesso ao crédito.
E o dinheiro não foi liberado por causa da burocracia, diz Viviane Seda, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV). Além dos juros, ela afirma que exigências como duplicatas a receber, aplicação financeira, seguro garantia, fiança bancária e alienação de bens ou imóveis ou a folha de pagamento atrelada à instituição acabaram sendo impeditivas para muitas pequenas empresas.
“As primeiras linhas de crédito oferecidas tinham altas taxas de juros e visavam a manutenção do emprego, proibindo demissões. Mas há setores em que essa proibição não funciona, como serviços e comércio, nos quais o maior custo é a mão de obra”, avalia a economista.
Com a postergação de impostos, faturamento baixo e as renegociações com os fornecedores, criou-se uma bolha que reduziu os meios de pagamento das empresas, o que as fez precisar ainda mais de recursos. Mas o sistema financeiro não está voltado para as pequenas empresas, e o governo não está voltado para o cidadão que precisa de assistência. O crédito é caro, ineficiente e tudo converte para a perpetuação da burocracia.
O próprio governo reconheceu, em meados de junho, a dificuldade de fazer o dinheiro chegar a quem precisa. O Pese então mudou e passou a permitir demissões e uso do dinheiro para pagamento de dívidas trabalhistas.
O Programa Nacional de Apoio à Micro e Pequena Empresa (Pronampe) foi sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro em 19 de maio, mas só foi regulamentado em 9 de junho. Em pouco menos de um mês, o Pronampe praticamente emprestou toda a garantia de 15,9 bilhões de reais prevista inicialmente a cerca de 218 mil empresas, segundo o Ministério da Economia.
A própria pasta admitiu que o valor não foi suficiente para atender todos os pequenos negócios que precisavam de crédito. Em julho, o Congresso Nacional destinou mais R$ 15 bilhões ao programa, usando recursos do Pese que não foram emprestados. O dinheiro deve começar a ser emprestado esta semana, segundo o governo.
Mas, para muitos, será tarde demais. Os pedidos de falência no Brasil subiram 28,8% em junho, em relação ao mesmo mês do ano anterior. Segundo a Seguradora Boa Vista, houve aceleração dos pedidos também em março, abril e maio.
Os números mostram que as pequenas empresas são as que mais sofrem. Um levantamento do Ibre/FGV mostra que 64% das empresas que foram no mercado atrás de crédito e não conseguiram são pequenas. Esse índice cai para 5% quando a empresa é grande.
Os recursos são emprestados pelos próprios bancos, mas têm garantia oficial de até 85% do valor emprestado, por meio do Fundo Garantidor de Operações (FGO). A economista Juliana Damasceno afirma que nem isso está sendo suficiente.
“O principal gargalo não é o volume de crédito em si, mas sim a forma de propagação desse crédito no sistema financeiro, principalmente por causa da atuação das instituições privadas, que hoje em dia têm tido uma certa relutância para assumir os riscos envolvidos nessa contratação de crédito”, explica.
Para Juliana, a lenta retomada da economia exige novas medidas de apoio aos pequenos empresários. “Uma das saídas, assim como foi feito em diversos outros países durante a pandemia, é a União garantir 100% do risco do crédito”, diz.
O gerente de políticas públicas do Sebrae, Silas Santiago, concorda que o Pronampe chegou tarde. “Ele demorou muito a entrar em linha depois da aprovação. A primeira operação demorou 62 dias para ser aprovada depois da aprovação pelo Congresso Nacional”, comenta.
Pequenos empregam mais de 50% dos trabalhadores
No Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), os atendimentos às pequenas empresas triplicaram. Na lista de pedidos, reina no topo os questionamentos sobre por que o crédito prometido pelo governo não chega.
“O governo anuncia muito valores, mas não explica como as pessoas podem conseguir. Estamos ajudando as pessoas as não desistir. As pessoas estão se afogando, não podem pedir uma lista de requisitos tão complicados, precisam jogar uma boia para socorrê-las”, diz Wilson Poit, diretor-superintendente do Sebrae-SP.
O consultor econômico Murilo Viana, mestre em economia pela Unicamp, lembra que as pequenas empresas são responsáveis por 30% do PIB do País e mais da metade dos empregos formais, conforme um estudo do Sebrae e da FGV. Portanto, segundo ele, a trava no crédito às pequenas pode ser uma economia tola, já que se elas morrerem, o custo com o desemprego pode ser ainda maior depois.
“A falta de crédito afeta a capacidade de recuperação da economia. O governo fala de medidas para o emprego voltar, mas ele precisa ter empresas para empregar essas pessoas”, argumenta Viana.
Os pequenos negócios dominaram a criação de empregos em 2019. As micro e pequenas empresas abriram 731 mil vagas formais, enquanto as médias e grandes fecharam 88 mil postos com carteira assinada. Considerando os dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), os pequenos negócios criaram 12,4 milhões de vagas entre 2007 e 2019, enquanto médios e grandes perderam 1,5 milhão.
Neste ano, até o fim de maio, 7,8 milhões de empregos já tinham sido destruídos no Brasil, segundo o IBGE. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE, para o trimestre encerrado em maio, mostram que o número de trabalhadores por conta própria teve redução de 8,4%.
Ao todo, 2,062 milhões de pessoas deixaram de empreender, a maioria formada por microempreendedores individuais (MEIs). Nesse período, também houve a redução de 377 mil empregadores. Em grande medida, são pequenas empresas que fecharam seus negócios, em função da queda nas vendas e das dificuldades no acesso ao crédito.
Pela importância que o segmento tem na geração de empregos, a deputada federal Rejane Dias (PT/PI) tenta aprovar um projeto de lei para prorrogar até o final de 2020 os empréstimos do Pronampe. “Houve demora na regulamentação da lei, o que trouxe diversas dificuldades de acesso ao crédito por micro e pequenas empresas brasileiras durante a pandemia. A prorrogação dá mais folga para que as empresas possam preencher todos os requisitos impostos pelos bancos”, afirma a parlamentar.
Valor liberado equivale a um quinto do necessário
Para Murilo Viana, os dados deixam claro que o Pronampe está longe de ser o suficiente. “Ponto um: o programa é tardio, faltou timing do governo; ponto dois: apesar de ter começado com uma velocidade boa, não há garantia de que esse volume vai crescer no mesmo nível da necessidade das empresas”, diz o especialista em contas públicas. “Com a falta de timing, empresas que eram saudáveis e no início da pandemia tinham apenas pequenos problemas de liquidez, agora estão insolventes.”
Os recursos públicos disponíveis, tanto no Pronampe como em outros programas, ainda serão pouco, segundo o estudo “Crédito para os pequenos em tempos de pandemia”, da FGV. A estimativa é de que a demanda por crédito não atendida deve somar R$ 202 bilhões em 2020.
Para chegar a esse número, os pesquisadores estimaram o faturamento total das 17,3 milhões de micro e pequenas empresas (MPEs) do país e a queda média de faturamento provocada pela pandemia por setor. O estudo explica que as MPEs costumam arcar com custos recorrentes (capital de giro) antecipando o dinheiro das vendas com recebíveis, já que, mesmo antes da pandemia, elas tinham dificuldade para conseguir crédito. Com o faturamento caindo, elas não conseguem antecipar recebíveis e passam a pedir empréstimos. Portanto, parte do capital de giro se transforma em demanda por crédito.
Para estimar a necessidade de crédito, eles observaram a queda no faturamento e a necessidade de capital de giro por setor, já que dependendo da atividade os custos recorrentes são maiores ou menores. Eles consideraram ainda a demanda normal por crédito, com base nos dados do ano passado, e o crédito concedido em 2019.
“Aplicando este raciocínio para todos os setores nos quais se distribuem as 17,3 milhões de MPEs, estimamos uma demanda de crédito da ordem de R$ 472 bilhões. […] Considerando ainda os dados de concessão de crédito divulgados pelo Banco Central (2019), estimamos uma lacuna entre a demanda potencial de MPEs e a oferta anual de crédito pelas instituições financeiras da ordem de R$ 202 bilhões”, diz o estudo.
Os pesquisadores acrescentam ainda que os números não levam em conta o fato de que os bancos estão concedendo “consideravelmente menos crédito em 2020 do que em 2019. A lacuna é provavelmente maior”.
“Os recursos anunciados pelo Pronampe não chegam nem a 20% da demanda. E os bancos privados não vão acelerar o crédito nesse momento se não houver uma garantia por parte do governo. Pelo contrário, eles vão colocar o pé no freio”, explica Lauro Gonzales, coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV. “Para que os canais de crédito continuem abertos para essas empresas de pequeno porte, é necessária a atuação do governo, não há outra forma”.
Na avaliação de Gonzales, um dos autores do estudo, dentro do grupo das empresas de pequeno porte, as menores têm mais risco de morrer durante a pandemia exatamente pela dificuldade de obter crédito. O pesquisador estima ainda que, dada a incerteza da duração da pandemia, neste segundo semestre pode haver um aumento de quebra das empresas, que já não conseguirão “segurar as pontas por tanto tempo”.
“Há duas ferramentas de combate à travessia da crise, crédito e o auxílio emergencial. O futuro dessas políticas que dará o contorno do caminho da economia. Pelo lado do crédito, há uma insuficiência, que nos próximos meses pode gerar uma quebradeira maior das empresas. Ainda mais em um cenário de menor consumo, com o fim do auxílio emergencial”, completa.
Para Viviane, da FGV, o crédito pode não servir mais como socorro, mas será essencial para a recuperação das empresas daqui para frente. “Ainda há muita incerteza sobre a reabertura. Não chegamos a um momento de estabilização da Covid-19 e há um descompasso entre a expectativa dos empresários e a dos consumidores. As empresas esperam que o consumo volte ao normal, mas os consumidores estão mais cautelosos”.
Da Redação