Em 2013, o médico sanitarista Manoel Fonsêca ficou estarrecido com a forma que os médicos cubanos do Mais Médicos foram tratados por parte de seus colegas de jaleco brasileiros na Escola de Saúde Pública do Ceará, em Fortaleza. Na época, os estrangeiros, recém-chegados ao País, sofreram agressões verbais e até ofensas racistas.
Naquele momento, Fonsêca e parceiros tiveram a ideia de criar um grupo de médicos que pudesse fazer oposição à visão elitista de boa parte da classe médica. Surgia, então, o Médicos pela Democracia.
O grupo começou pequeno, com menos de 15 profissionais, mas logo a proposta ganhou corpo. Hoje, são 180 médicos democráticos espalhados pelo Ceará, São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande do Norte, Pernambuco e outros estados.
“Foi quando nós, médicos progressistas, vimos que não estávamos sozinhos”.
De lá para cá, o movimento passou a estar na linha frente dos principais protestos em Fortaleza pela defesa da democracia, do mandato da presidenta eleita Dilma Rousseff, pelos Mais Médicos e pela valorização do Sistema Único de Saúde (SUS).
Formado no início da década de 1970 e torturado durante a ditadura militar (1964-1985), Fonsêca diz se espantar com o quanto a medicina se tornou um lugar de preconceitos e privilégios.
“Os médicos eram progressistas antigamente. De repente, passaram a se achar diferentes, mais importantes do que os outros. A medicina é uma profissão essencialmente humanitária, para aliviar sofrimentos. Essa arrogância é um negócio tão ridículo”, condenou.
Em sua trajetória profissional, o médico sanitarista atuou na Secretaria de Saúde, além de ter participado do processo de reforma sanitária e da implantação do Programa de Saúde da Família do Ceará. Ele também ajudou a criar a Escola de Saúde Pública do Ceará, onde viu os cubanos serem hostilizados pela “elite do jaleco branco”, como define.
Apesar das palavras firmes, Fonsêca, que nasceu em Quixadá, no interior do estado, e hoje mora em Fortaleza, mantém tom e gestos dóceis. É autor de sete livros livros, alguns de poesia, dedicados a saúde pública, à democracia e ao poder das mulheres.
O seu preferido é “Iracema – Nosso amor”, uma compilação de contos e poesias escritos para a bióloga Iracema Serra Azul, a sua esposa dos últimos 46 anos.
Ambos foram presos e torturados pelos militares pela luta contra a ditadura.“Soubemos superar porque eu e a minha companheira sempre tivemos uma relação muito afetuosa”, afirma.
Em um dos textos, escrito durante sua prisão no Instituto Penal de Fortaleza (a acusação era de subversão), Fonseca escreve à amada, sonhando com a liberdade: “Minha menina (…) Vamos à praia com os pirralhos e também dar um passeio por nossa Fortaleza, a terra de Iracema. De mãos dadas como dois namorados”.
Nascimento do grupo
“Os médicos brasileiros passaram a xingar os cubanos: ‘macacos’, ‘escravos’, ‘voltem para a senzala’. Parecia um corredor polonês”, relembra Fonsêca sobre o ato ocorrido na Escola de Saúde Pública de Fortaleza, em 2013.
Por causa das agressões e do posicionamento das entidades médicas contra a reeleição de Dilma, nasceu a ideia de criar o grupo, mesmo Fonsêca tendo críticas à presidenta e ao PT.
“O Médicos pela Democracia publicou dois manifestos contra o golpe em jornais, passamos a participar de atos pela democracia. O grupo unificou profissionais que não aceitavam a intolerância e a arrogância de parte da classe médica. Houve um entusiasmo muito grande entre os médicos de esquerda.”.
“Os médicos progressistas se sentiam meio sozinhos. De vez em quando aparece um médico e diz: ‘que bom, eu não estou sozinho. Que alegria ter encontrado vocês’. Está sendo uma experiência muito gratificante”, conta.
Ele explica que o grupo também se articulou com entidades de outros setores, como o Mulheres do Ceará com Dilma, o Levante Popular da Juventude e o Retroceder Jamais.
Mais Médicos
Fonsêca faz questão de explicar a diferença entre os médicos dos Mais Médicos e boa parte da classe médica nacional.
“Os médicos elitistas têm a visão de que, por deter parte do saber, podem submeter as pessoas ao seu conhecimento. É uma visão de autoridade sobre o corpo das outras pessoas. Eles, também, não conseguem admitir que um médico cubano vá ao interior do interior. Eles acham que os cubanos estão usurpando um lugar que é deles. Mas eles próprios não vão”.
“Os cubanos vieram inverter a relação médico e paciente. Os profissionais dos Mais Médicos tratam as pessoas como gente: examinam, tocam, conversam, visitam em casa. Os médicos da elite não fazem a mesma coisa porque não gostam de perder tempo com os mais pobres”.
Ele explica, ainda, que a discriminação de parte dos médicos contra os pobres se percebe inclusive nas faculdades.
“Há o preconceito até entre os alunos. Ainda mais agora com o Enem, com o Fies e outras alternativas que os mais pobres estão chegando cada vez mais às universidades”.
Para ele, a luta dos Médicos pela Democracia ajudou a equilibrar o discurso de ódio entre os médicos.
“Os médicos da elite jamais esperavam que a gente fosse dar a cara a tapa, assinasse manifestos, publicasse no jornal de maior circulação da cidade. Esses atos fizeram com que eles arrefecessem um pouquinho, ainda mais depois que ficou evidente a quantidade de políticos corruptos que lutavam pela saída de Dilma. Eles eram muito arrogantes”.
Todos precisam do SUS
De acordo com Fonsêca, o SUS resolve muitos problemas de saúde pública, até em intervenções de alto nível, como transplantes renal e cardíaco. Ele lembra, ainda, que todos precisam e utilizam o sistema de saúde pública brasileiro de alguma forma.
“Todas pessoas precisam do SUS, por causa da vigilância sanitária e epistemológica, controle de endemias, vacinação”, afirma.
Para ele, o grande problema do SUS é o atendimento de emergência, por falta de recursos e pela alta procura por vezes sem necessidade da população, já que as UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) muitas vezes não resolvem a questão.
Fonsêca afirma que o maior ataque o governo golpista de Temer pode causar à saúde brasileira é o congelamento de recursos.
“Estamos em um processo de envelhecimento populacional, com todas as questões de saúde que se acarreta disso, e de repente se congela os recursos financeiros. O problema será grande porque dificulta a atenção primária e a secundária”.
O médico sanitarista tem esperanças de que o Brasil vai superar o golpe. Mas a luta é fundamental.
“O governo usurpador e ilegítimo de Michel Temer não deve ter trégua para pisotear a democracia, destruir direitos conquistados, jogar a soberania nacional na bacia das almas e entregar o pré sal a multinacionais petroleiras”.
“Precisamos ocupar as ruas em defesa da democracia e dos direitos sociais duramente conquistados. Não há outra saída: Diretas, já!”.
Por Bruno Hoffmann, de Fortaleza, para a Agência PT de Notícias