Partido dos Trabalhadores

Presença de militares no governo revela que país não superou ditadura

Historiadora ouvida pelo Brasil de Fato critica intensa participação de militares porque “eles não estão na política com igualdade de condições porque detêm as armas”

Valter/Campanato/Agência Brasil

General Heleno e Bolsonaro

Um levantamento publicado pelo jornal O Estado de São Paulo no último sábado (2) mostrou que cerca de 130 representantes das Forças Armadas estão presentes atualmente no Poder Executivo federal sob o governo de Jair Bolsonaro (PSL).

Distribuídos em funções de diferentes níveis de gerência, eles estão no primeiro escalão, representando oito do total de 22 ministros, com participação em diferentes áreas, como segurança institucional, infraestrutura, transparência pública, minas e energia, ciência e tecnologia, etc.

De acordo com outra contagem feita pelo Estadão em dezembro passado, o número de militares na cúpula da gestão é maior que o do governo do general Castelo Branco (1964-1967), que deu a largada do ciclo ditatorial no Brasil somando cinco ministros com esse perfil.

Além disso, representantes das Forças Armadas ocupam cargos de comando no segundo e no terceiro escalões da gestão Bolsonaro, como secretarias, chefias de gabinete, diretorias e outros núcleos de poder, a exemplo das presidências da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Para Rosa Cimiana dos Santos, integrante do Comitê de Acompanhamento da Sociedade Civil (Casc) que atua junto à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, o retorno de militares ao poder governamental passa por uma superação ainda incompleta do período da ditadura.

Ela considera que esse processo vinha dando sinais desde o governo de Michel Temer (MDB), em que o ministro da Justiça, Torquato Jardim, por exemplo, contava com militares entre seus assessores. O agora ex-ministro teve, no passado, ligação com a ditadura militar, ocupando diferentes cargos ao longo do período, como o de chefe do Gabinete Civil da Presidência do governo de João Figueiredo (1981-1985).

“Eles [os militares] só estavam quietos, dentro do armário, mas agora saíram, e saíram com força total. Eles já vinham se preparando há muito tempo, e eu acho que nós, como esquerda, ex-perseguidos e atuais perseguidos políticos, não nos preparamos. Achamos que estávamos virando uma página da história. Se você não pune os torturadores, isso não fica bem resolvido, não se resolve”, assinala.

Para a historiadora Ana Rita Fonteles, professora do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC), a presença da ala militar no governo suscita diferentes níveis de análise. Ela destaca, em primeiro plano, os traços que demarcam, de modo geral, a presença de representantes das Forças Armadas no poder.

“Eles não estão na política com igualdade de condições porque detêm as armas e, para além disso, um ethos  [conjunto dos costumes e hábitos] também diferente do que seria o dos políticos do mundo civil – uma hierarquia que é própria, uma dificuldade muito grande de lidar com a questão da diversidade de convicções, da pluralidade de opiniões, e a questão principal de poder impor ou tolher determinados posicionamentos a partir das armas e dos seus interesses”, analisa.

A pesquisadora resgata como exemplo o posicionamento manifestado, ainda em novembro de 2018, pelo general Eduardo Villas Bôas, então comandante do Exército, a respeito da disputa que envolveu um dos pedidos de habeas corpus do ex-presidente Lula (PT) no Superior Tribunal Federal (STF), em abril do mesmo ano.

Durante uma entrevista, Villas Bôas, que hoje atua no Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do governo Bolsonaro, sugeriu que o Exército teria cogitado “intervir” caso o STF desse ganho de causa ao petista. A declaração incendiou o debate público, sendo repudiada por juristas e outros atores.

“É um tipo de participação maciça e, vamos dizer, inadequada também do ponto de vista da expressão política, que faz com que a sociedade se sinta ameaçada”, observa Ana Rita Fonteles em relação à manifestação do general.

História

Analisando a linha do tempo da história do Brasil, a pesquisadora sublinha que não é novidade a presença de membros das Forças Armadas em movimentos ou ações de cunho político. Ela acrescenta que essa participação vai além do período da ditadura civil-militar (1964-1985) e que nem sempre os militares estiveram em campo para atuar politicamente em defesa de práticas autoritárias e conservadoras.

A professora destaca que, em diferentes momentos, houve registro da participação de agentes militares em insurreições de natureza mais democrática. Ela cita como exemplo a figura de Luís Carlos Prestes, tenente e político comunista que liderou a chamada Coluna Prestes. Crítico do período da República Velha, o movimento lutava por pautas como voto secreto e obrigatoriedade do ensino público e primário.

Ana Rita Fonteles frisa, no entanto, que os militares que hoje estão no cenário político se enquadrariam em um perfil situado em outro espectro, voltado à defesa dos interesses de grupos como a elite agrária e econômica, o capital financeiro, entre outros.

“São categorias a favor, por exemplo, da revogação da demarcação de terras indígenas, que defendem o avanço sobre terras na Amazônia pro desenvolvimento de uma agricultura predatória que combatem os movimentos sociais que desacreditam a política como campo de relações próprias pra discussão de determinados temas, que querem liberar as armas”, exemplifica a historiadora.

Nesse embalo, ela acrescenta que a ideologia que mobiliza tais grupos tende a travar políticas públicas ligadas aos interesses populares porque oxigena a defesa de pautas que caminham em sentido contrário. Ela cita, por exemplo, a militarização da educação, a expansão de uma política rural de concentração de terras e as medidas neoliberais como a reforma da Previdência, que vêm sendo colocadas pelo governo Bolsonaro.

Contradição

Ao traçar um paralelo com os governos ditatoriais, por exemplo, em termos de ideário de país, Ana Rita Fonteles grifa que a gestão de Bolsonaro, apesar de contar com a presença massiva e ostensiva de representantes das Forças Armadas em postos estratégicos, vive uma contradição entre o discurso de sustentação do patriotismo, típico do militarismo, e a implementação de medidas que divergem da defesa do patrimônio nacional, como é o caso da política de privatizações.

“Os militares [da ditadura] tinham um lado também, eles também estavam servindo as elites, mas tinham um projeto de Brasil muito baseado na doutrina de segurança nacional e alguns princípios muito claros, que hoje a gente não vê nem em termos de projeto de desenvolvimento nem de princípios que seriam caros a uma cultura militar. Muito claramente, eles entram hoje mais na defesa da garantia de um certo projeto de governo do que de país”, acredita.

Por Brasil de Fato