Ano novo, velha violência. Nos 13 primeiros dias de 2020, indígenas e quilombolas foram vítimas de assassinatos e ataques que deram continuidade à escalada de violência que atingiu os povos tradicionais e originários no ano passado.
O número de lideranças indígenas mortas em conflitos no campo, por exemplo, foi o maior em pelo menos 11 anos. Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) registraram sete mortes em 2019, contra duas mortes em 2018. As informações são preliminares e o balanço final só será divulgado em abril deste ano.
Entretanto, a tônica continua a mesma. Logo no início de 2020, no dia 2 de janeiro, cerca de 180 famílias Guarani e Kaiowá sofreram ofensiva de seguranças privados em Dourados, no Mato Grosso do Sul. O confronto, que durou 16 horas e terminou apenas no dia seguinte, deixou sete indígenas feridos por balas de borracha e projéteis de arma de fogo.
Entre eles, um indígena de 12 anos que perdeu três dedos da mão esquerda ao manipular uma granada deixada para trás pela polícia. Os policiais, de acordo com o Centro Indigenista Missionário (Cimi), foram até o local durante o ataque dos seguranças privados e também agiu de forma violenta contra os indígenas.
A ação de seguranças privados de fazendeiros contra os indígenas que ocupam os territórios nos limites da Reserva de Dourados, do qual foram expulsos, é constante. Após o ataque do início do ano, a Defensoria Pública da União (DPU) de Campo Grande solicitou ao governo estadual que requisite o envio da Força Nacional de Segurança Pública para atenuar os conflitos.
Já no primeiro domingo do ano, dia 5 de janeiro, dois camponeses quilombolas foram brutalmente assassinados no município de Arari, no Maranhão. Lideranças da associação quilombola do Cedro, Celino Fernandes e Wanderson de Jesus Rodrigues Fernandes, pai e filho, foram mortos com tiros no rosto após terem a residência invadida por quatro pistoleiros.
Segundo a CPT, os trabalhadores haviam denunciado o conflito agrário entre a comunidade e os grileiros, que cercam – inclusive com cercas elétricas – terrenos públicos da região para criação de búfalos.
Paulo Moreira, da coordenação nacional da CPT, avalia que o primeiro ano do governo Bolsonaro aprofundou a violência contra os povos tradicionais da floresta.
“O recado do governo foi claro. Ele não vai apoiar de forma alguma políticas em apoio aos povos e comunidades tradicionais. Isso está provocando, tem provocado ao longo dos últimos anos, esse incentivo à violência. O governo tem uma política de favorecimento ao capital, ao agronegócio e às mineradoras. Deliberadamente e sistematicamente, paralisou as políticas dos povos do campo e avançou no sentido contrário”, denuncia Moreira, acrescentando que a perspectiva negativa se mantém para 2020.
Durante a noite de 6 de janeiro deste ano, no dia seguinte ao assassinato dos quilombolas maranhenses, três indígenas do povo Miranha, da Terra Indígena Cajuhiri Atravessado, no município de Coari (AM), também foram assassinados. As mortes ocorreram devido a conflito local envolvendo indígenas e não indígenas e desavenças relacionadas à extração de castanha do Pará na região.
Professor, o indígena Joab Marins da Cruz foi assassinado em casa, na aldeia Cajuhiri Atravessado. De acordo com a PM de Coari, Joab teria entrado em confronto com proprietário de uma espingarda supostamente roubada por seu irmão.
Logo depois, Marcos Marins da Cruz e Francisco Marins da Cruz também foram mortos após tentar localizar e perseguir os autores dos disparos contra Joab. Um dos assassinos está preso.
Para Paulo Moreira, não é coincidência que grande parte dos conflitos e assassinatos contra indígenas e quilombolas historicamente aconteçam na Amazônia. Ele ressalta que os territórios dos povos tradicionais são extremamente valiosos e cobiçados por diversos setores.
“É um mercado que avança de forma violenta, incentivado pelo Estado, a exterminar os povos para exploração da floresta. É o fim da floresta”, lamenta o coordenador da CPT.
Outra forma de violência
Desde o início de janeiro, seis crianças indígenas com menos de um ano de idade também morreram na região da Terra Indígena Vale do Javari. Em entrevista ao Cimi, Jorge Duarth, coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), afirmou que as mortes ocorreram por conta das condições insalubres do porto local, onde as canoas indígenas são atracadas e não há saneamento básico.
Ainda de acordo com informações do DSEI, a maioria dos óbitos ocorreu na cidade de Atalaia do Norte, município brasileiro do interior do estado do Amazonas.
Antonio Eduardo Cerqueira de Oliveira, secretário-geral do Cimi, analisa que a desestruturação completa de uma rede de assistência que garanta direitos básicos é outra forma de violência responsável pelo aumento de mortes de indígenas no Brasil.
Como exemplo, ele cita o desmonte de instituições importantes desde o início do governo de Jair Bolsonaro. Entre elas, a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
“As populações indígenas e quilombolas estão sendo colocadas como inimigas do Estado, do povo brasileiro. Isso é terrível. O próprio Estado brasileiro patrocina uma violência tamanha que crianças morrem e isso parece natural. Três indígenas foram assassinados e isso parece natural”, lamenta Cerqueira de Oliveira.
Segundo ele, o governo Bolsonaro tem a intenção de privatizar o atendimento à saúde das comunidades indígenas e já iniciou o processo de desarticulação dessa rede.
Crítico ao projeto de mineração em terras indígenas apresentado pelo governo, o secretário do Cimi relata ainda que o fim do programa Mais Médicos e a consequente retirada de médicos cubanos das regiões mais vulneráveis do país precarizaram ainda mais o atendimento aos indígenas.
“São sinais de que estamos vivendo uma situação de barbárie. A população indígena, rural e mais pobre, está completamente desprotegida”.
Por Brasil de Fato