Quem nunca pediu transporte por aplicativo? Os dados indicam que 71% das pessoas com celular já pediram ao menos uma vez. Com o preço cada vez mais caro e qualidade cada vez menor dos modais de transporte coletivo, este tipo de locomoção popularizou-se a ponto de o Brasil ser o segundo maior mercado da famosa Uber no mundo, faturando ano passado mais de 1 bilhão de dólares por aqui, e sendo a maior empregadora do país, com mais de 600 mil motoristas “parceiros”.
Cresce também de forma acelerada as entregas (delivery), sobretudo de comidas. Imagine só você fazer seu próprio horário, não ter patrão para encher o saco, e ganhar dinheiro com seu suado esforço? Quanto mais trabalha, mais ganha, basta querer! Lindo né?
Este imaginário faz parte de um conceito, deturpado, que hoje está na moda, que é o conceito de liberdade. “Liberdade de escolha, livre das amarras do Estado que sufoca, que impede o desenvolvimento das forças de mercado”. A figura quase mítica, hercúlea, quixotesca, do empreendedor surge como o atual herói moderno.
Os jovens devem sonhar em empreender, a solução para o desemprego é abrir a própria empresa, e a solução para a economia é reduzir os custos para gerir uma companhia-sobretudo os encargos sociais e trabalhistas-. A carteira azul assinada é peça de museu, flexibilidade é a palavra.
Como os sofistas gregos milênios atrás, a tese, num primeiro olhar, tem sua lógica e até emociona. Depoimentos em pesquisas mostram que jovens preferem trabalhar vendendo bolos do que trabalhar de empregada. Não por menos está disseminada em todos os ramos de serviços, e rotulando como obsoleto tudo que não esteja de acordo com este hiper- individualismo meritocrático.
Mas cabe questionarmos: Que liberdade é essa quando trabalhar, ganhar dinheiro para sustentar-nos, sobretudo num Estado mínimo (ao custo social máximo) é uma necessidade? Liberdade para quem, e para quê?
Aposentadoria, direitos, proteção social não são perspectivas para estes trabalhadores. Precisamos entender o perfil destes trabalhadores e com humildade refletir sobre o retrato do mundo da PEA atual. Sem patrão, sem direitos, sem tutela, jornadas extenuantes, mas com renda maior, ainda que os riscos sejam todos por conta do trabalhador. O imediatismo precede a estabilidade e o planejamento sob o qual foi erigido nosso ordenamento juslaboral e o arcabouço da seguridade social.
Urge, portanto compreender e ressignificar o Trabalho para além de algo necessário e de subsistência. Mesmo no período áureo do país durante o Governo Lula, a partir de 2003, com o aumento da formalização do trabalho e a recuperação da taxa de sindicalização, a filiação sindical na parcela mais jovem dos trabalhadores não cresceu, e hoje é a que mais diminui.
O retrato desta Liberdade são os jovens que trabalham 12 horas por dia, sem nenhum direito, resguardo ou tutela, para ganhar 2 mil por mês no máximo. São os motoristas de aplicativos que rodam também mais de 10 horas por dia, com um faturamento bruto alto, mas que diminuído dos 25% da empresa, combustível e demais encargos ligados ao carro- a maioria aluga os automóveis-, deixam de receber quase dois terços do que ganha( Mas o vilão são os 11% de contribuição para previdência que assegura direitos ligados a assistência e seguridade social como auxílio-doença e auxilio- acidente, e os 8% do FGTS que garantem o sistema habitacional Brasileiro).
Entender a força ideológica deste discurso é vital para que possamos apresentar alternativas que protejam nossa juventude e também recuperar no nosso tecido social conceitos como solidariedade, categoria, classe, pertencimento e identidade, buscando o Trabalho e não apenas como emprego de subsistência e alienador, mas sim dotado de função social e emancipador, com um conteúdo de direitos e de ampliação da cidadania.
Os Estudos apontam que a média de idade dos entregadores é de 29 anos, sendo que 36,3% tem até 25 anos e mais de 80% tem até 35 anos. Os motoristas de aplicativo não em média são mais velhos, mas mesmo assim mais de 15% de todos os motoristas tem até 29 anos.
Em ambos os casos, a maioria esmagadora, mais de 90% são homens. Estes aplicativos, segundo a última PNAB, “empregam” mais de 4 milhões de Brasileiros de forma principal, sendo hoje 2 em cada 10 autônomos no país, mas com cerca de 17 milhões que utilizam para obter alguma renda, e continua crescendo de forma exponencial, com os motoristas de aplicativos crescendo quase 30% em apenas 2 anos, mais de 810 mil trabalhadores a mais entre 2017-2019.
Estamos falando de Uber, 99, Cabify, Rappi, mas também de apps como DogHero, PetAnjo, Getninjas, e tantos outros, praticamente qualquer serviço no país hoje conta com ao menos um App. Com 40 milhões de pessoas no trabalho informal, 43% da população ocupada no país, os aplicativos já são de longe os maiores empregadores. Este período de hegemonia do neoliberalismo no país resultou em empobrecimento, aumento do desemprego e uma mercantilização dos direitos sociais de forma a destruir o legado da Constituição Cidadã, sobretudo aqueles expostos no artigo 7º. Neste quadro dramático, não há dúvida que os jovens, em especial os de baixa renda foram os primeiros e os que mais foram afetados.
É preocupante ainda o crescimento desenfreado do número de CNPJs, sobretudo MEIs que já somam 10 milhões, sendo que em 2018 e 2019 foram mais de 1,5 milhão por ano, sendo este número liderado por jovens. Recente estudo demonstra que jovens de 18 a 25 anos abrem mais de 20% dos MEIs, mais de 402 mil somente em 2018. Na falta de vagas formais com boa remuneração, vemos catapultar-se esta forma de sobreviver, sendo que 4 em cada 10 novos “empreendedores” jamais tiveram carteira assinada e 85% dos novos negócios no país abertos nos últimos anos são MEIs.
Entre as atividades preponderantes, temos vestuário e acessórios, cosméticos, serviços de embelezamento e bebidas. O crescimento de ambulantes, de mais de 12% no último ano (250 mil) deve também ser fruto de reflexões da esquerda, com formas de proteger os comerciantes informais que já chegam a mais de 2 milhões no país.
Repensar nossa atuação no mundo do Trabalho, buscando fomentar não apenas a inclusão produtiva, mas também política e cidadã é falar da nossa juventude, pois 40% dos desempregados tem até 25 anos, e se estendermos até os 30 anos, temos mais da metade daqueles desocupados no país, número alarmante uma vez que no 3º Trimestre de 2019 o IBGE estimou em 12,5 milhões (11,8%), aos quais se somam 4,7 milhões de desalentados e mais uma taxa de subutilização de 24%. É falar também das mulheres, que são maioria das desempregadas, com 53,3% do índice e ainda recebem em média 532 reais a menos que os homens (2540 contra 2008 de rendimento mensal).
Ainda, num limbo entre a representação sindical e a representação estudantil estão os estagiários que já somam mais de meio milhão no país (76% no ensino superior, 20% no EM) e cujos estudos mostram que a média da bolsa-auxílio percebida caiu, de 883 em 2010 para 850 reais. Já os aprendizes dobraram no mesmo período e hoje são quase 400 mil. Para termos ideia da importância deste setor que garante a subsistência de 1 milhão de jovens no país, a remuneração total no ano de 2017 chegou a 6,3 bilhões e o impacto no PIB foi de mais de 15 bilhões.
Entender o perfil da juventude trabalhadora é crucial para que possamos formular estratégias, táticas e também políticas públicas que sejam realmente eficazes. O trabalho para a juventude significa hoje: a) informalidade e ilegalidade- mais da metade dos brasileiros começa a trabalhar antes da idade legalmente permitida, e este segmento de 15 a 29 anos foi o mais afetado pela flexibilização de direitos trabalhistas e pela terceirização, tendo os vínculos de emprego mais precários e também a maior taxa de rotatividade. b) O padrão deste jovem super explorado tem cor, e tem gênero.
A Juventude negra representa a maioria dos jovens desempregados e as jovens negras dominam o mercado de trabalho doméstico, seja ele remunerado (empregada, diarista) ou não (dona de casa). c) Impossibilidade de estudar, pois segundo o DIEESE os jovens são aqueles que mais excedem a jornada de 44 horas e não surpreende portanto que apenas 15% dos jovens consigam de fato conciliar estudo e trabalho, e aqueles que por ventura conseguirem, sofrem de altíssimas taxas de stress pois não conseguem usufruir de tempo livre.
Por fim, no capitalismo, precisamos ter em mente que juventude hoje é também produto, juventude vende, ser jovem é o ideal propagado. As pessoas gastam fortunas para parecerem jovens por mais tempo. Mas se ter o aspecto jovem é algo valorizado, o restante nem tanto. Os jovens ainda são considerados e tratados como meros “adultos em formação” aos quais cabe apenas esperar quando os mais velhos se aposentarem para que tomem as rédeas da política, na economia, nas próprias casas.
Mesmo esta pretensa valorização é de apenas um tipo de juventude. E uma juventude que tem um padrão estético, social, econômico. O restante, é estigmatizado, como juventude-problema, tratada como caso de polícia, como delinquência, e pré-julgada como vagabunda ou bandida. São os moleques.
E neste cada um por si, dessa cultura de consumo de massas, uma educação voltada para a competitividade no mercado de trabalho onde você enxerga o colega como adversário e os jovens da periferias enxergam qualquer instituição como mais uma forma de opressão, fica o desafio de se repensar o modelo com o qual o movimento sindical, os partidos e a esquerda dialogam com esta juventude, para sermos capazes de novamente construir nesta massa de jovens super explorados a identidade de classe, os ideias de solidariedade, em especial a solidariedade de classe, vital para a ação coletiva dos trabalhadores.
O desafio não é pequeno, enfrentaremos para isso o governo, a mídia e a cultura capitalista enraizada e um modelo produtivo disruptivo que dificulta a organização no local de trabalho( aliás, metade dos jovens que trabalham sequer tem local- a não ser que este seja a rua, a bike, o carro).
Ramiro Castro, membro Diretório Municipal PT de Porto Alegre/RS e ex-secretário de Formação Política PT/POA