A “maior democracia do mundo” balança como um bambuzal ao vento, e grande parte dos chefes de Estado do planeta sequer pisca os olhos enquanto acompanha o desenrolar do grande imbróglio em que que se tornaram as eleições presidenciais norte-americanas 2020. Nem tanto pelos rumos que a política externa ianque poderia tomar com a recondução de um republicano ou a vitória de um democrata, mas pela incerteza sobre até onde o presidente Donald Trump deve ir caso perca para Joe Biden.
Em um escrutínio ainda mais polarizado que o de 2016, com número histórico de votantes (160 milhões – 100 milhões antecipados por correio), as suspeitas de fraude lançadas ao vento pelo próprio presidente da República acirram os ânimos entre militantes e geram dúvidas sobre os desdobramentos que a ofensiva judicial já movida por Trump, antes mesmo do término da apuração, poderá acarretar.
Enquanto deslegitima o sistema eleitoral norte-americano, Trump vê Biden obter vitórias em estados decisivos, como Michigan e Wisconsin, e esperar a confirmação dos resultados em Nevada e Arizona, além da expectativa de virada na Pensilvânia e Georgia.
Por enquanto, Biden manteve todos os estados nos quais Hillary Clinton venceu em 2016, está perto da vitória no até hoje republicano Arizona e recuperou Wisconsin e Michigan. Ambos, territórios críticos do cinturão industrial que foram fundamentais para a vitória de Trump, há quatro anos, graças a margens de menos de 1%.
A maré de eleitores já coloca o democrata como o candidato com mais votos individuais da história dos Estados Unidos – 69,7 milhões, contra 69,4 milhões de Barack Obama. E Trump recebe 66,8 milhões de votos, quatro milhões a mais do que em 2016, em meio a uma pandemia com mais de 230 mil mortos.
Trump emitiu a “ordem unida” em discurso veiculado ao vivo no Twitter, ainda na madrugada de quarta (4). Além de se declarar vencedor, disse haver “fraude” no processo de contagem dos votos, sem apresentar quaisquer evidências. Na verdade, nenhuma denúncia concreta foi feita em todo o país, com exceção do submundo paralelo das redes sociais do trumpismo.
Mas a campanha de reeleição do presidente anunciou algumas horas depois da postagem do líder que entrara com ações judiciais em Michigan e na Pensilvânia, preparando o terreno para a impugnação dos resultados nos dois estados. As ações solicitaram que a apuração fosse interrompida até que se garantisse aos observadores “acesso significativo” a centrais de apuração, com a permissão de examinar cédulas já processadas.
A campanha também pretende intervir em um caso em que o Supremo Tribunal admitiu a tramitação, mas recusou fazê-lo com urgência, sobre se as cédulas recebidas após a jornada eleitoral podem ou não ser contadas. A Suprema Corte do Estado permitiu que a Junta Eleitoral reunisse as cédulas por correio até esta sexta (6), desde que o carimbo postal fosse de terça (3), o dia da votação. A campanha também pedirá recontagem em Wisconsin, onde Biden se impõe por ligeira margem, com a apuração quase finalizada.
Não é a primeira vez que Trump questiona as instituições democráticas. No passado, lançou acusações infundadas de fraude eleitoral, insultou juízes e promotores, desprezou o princípio da separação de poderes. Mas não há precedentes para a ofensa da madrugada de quarta, quando ameaçou ir ao Supremo Tribunal para suprimir milhões de votos legítimos.
Semanas antes da votação, os republicanos colocaram na corte a juíza conservadora Amy Coney Barrett, após o falecimento da progressista Ruth Bader Ginsburg. Com esse movimento, inclinaram a balança ainda mais à direita (seis votos contra três) na mais alta instância judicial do país.
O horizonte lembra as eleições do ano 2000, em que o Supremo acabou decidindo o resultado, entregando a vitória ao republicano George W. Bush contra o democrata Al Gore por somente 527 votos, após uma complicada recontagem na Flórida. Mas aquela vez foi um problema real com a apuração e erros nas cédulas. Agora, é uma insólita acusação de fraude sem nenhuma prova. Apenas convicções…
Organização europeia teme violência política nos EUA
Convidado a acompanhar as eleições como observador, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso descartou a possibilidade de fraude. “O que está trazendo confusão e guerra de versões é a possibilidade do voto antecipado, que existe aqui. Sobretudo, pelo correio”, disse o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). “Quando é uma eleição em que tem um claro vencedor, isso não se revela um problema. Mas numa eleição apertada, esses votos passam a fazer diferença.”
Para a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), Trump tem usado sua posição repetidamente para obter vantagens políticas. Michael Georg Link, co-coordenador da missão internacional de observação eleitoral, disse que a apuração dos votos ainda está em andamento e que o trabalho da OSCE permanecerá.
“Nossa equipe e especialistas vão permanecer no país para acompanhar o resto do processo nos próximos dias”, afirmou Link, que também é membro do Bundestag, o Parlamento alemão. Ele crescentou que a retórica da campanha alimentou tensões no país. “Alegações infundadas de deficiências sistemáticas, notadamente do presidente em exercício, inclusive na noite das eleições, prejudicam a confiança do público nas instituições democráticas.”
Em comunicado, o observatório expressa o temor de que episódios de violência com motivação política sejam vistos nos Estados Unidos após as eleições. “Essas declarações de um presidente em exercício enfraquecem a confiança do público nas instituições do Estado e foram percebidas por muitos como um aumento do potencial de violência com motivação política após as eleições”, declara a nota da missão, que reúne 102 observadores de 39 países.
A preocupação da organização europeia procede. A tensão em torno da falta de resultados começou a se manifestar nas ruas dos Estados Unidos menos de 24 horas após as postagens furiosas de Trump. Já na noite de quarta, o nervosismo tomou a forma de novos protestos contra o presidente em algumas cidades. Mas em outras, como Phoenix (Arizona), trumpistas ferrenhos manifestaram-se diante da autoridade eleitoral do condado para exigir uma recontagem “até a última votação”.
O protesto da Phoenix foi convocado por personagens do ambiente conspiratório das redes sociais. Cerca de 200 pessoas se reuniram no centro da cidade com todos os tipos de parafernálias de Trump para pedir a recontagem. “Vamos ficar aqui não só até o fim da eleição, mas também depois”, proclamou um dos líderes da concentração com um megafone. “Vamos fazer ouvir a sua voz.”
Na manifestação, personagens radicais se misturavam a famílias e casais. Vários dos participantes vestiam uniformes militares e muitos estavam armados com pistolas ou rifles de assalto. No Arizona é permitida a exibição de armas em público. Em outras cidades o cenário se repetiu, com os republicanos protocolando processos em diversos delas para tentar paralisar a contagem.
A ideia geral das manifestações é de que algo estranho está acontecendo na contagem dos votos. A vantagem de Trump foi desaparecendo com a apuração dos votos pelo correio, e isso desencadeou o sentimento de fraude que o presidente vinha alimentando desde que a possibilidade de derrota tornou-se palpável.
A estratégia já havia sido detalhada dias antes em reportagens. O intuito é questionar justamente os votos enviados pelos correios. Usuários em redes sociais ligadas a Trump reforçam suspeitas sobre o processo eleitoral, enquanto o @TeamTrump, conta oficial da campanha, posta vídeos e discursos de fiscais do partido republicano durante a apuração em estados onde os resultados ainda não estão finalizados.
Na mesma conta, são várias as mensagens incentivando que apoiadores enviem denúncias sobre fraudes nos locais de votação. São disponibilizados diversos números de telefone para que o material seja encaminhado.
Trump é criticado até pelos republicanos
Nenhum líder eleito tem o poder de impedir unilateralmente a contagem de votos. Também não é claro o caminho que o presidente teria para levar o assunto ao Supremo, ao qual não pode se dirigir diretamente. O tribunal só se pronuncia quando as instâncias inferiores já deram sentença. De qualquer forma, o Partido Republicano, incluindo o próprio vice-presidente Mike Pence, evitou comprar a briga de Trump. Pelo contrário.
O senador Marco Rubio, da Flórida, foi o primeiro congressista republicano a criticar publicamente a declaração de Trump. Em sua conta no Twitter, escreveu: “O resultado da corrida presidencial será conhecido após cada voto legalmente expressado ter sido contado”.
John Bolton, ex-assessor de segurança nacional de Trump, disse que os comentários do presidente “foram alguns dos comentários mais irresponsáveis que um presidente dos Estados Unidos já fez”. “Ele lançou dúvidas sobre a integridade do processo eleitoral puramente para sua própria vantagem política. É uma vergonha”, afirmou.
Chris Christie, ex-governador de Nova Jersey, também disse que não havia base para o argumento de Trump, e se manifestava “não como ex-governador, mas como ex-procurador dos Estados Unidos“. “Todos esses votos que estão valendo devem ser contados agora”, declarou o republicano.
Em entrevista à ‘Revista Fórum’ nesta quinta (5), Celso Amorim, ex-ministro de Relações Exteriores e da Defesa nos governos Lula e Dilma Rousseff, também criticou a postura de Trump. “É natural e previsível que em um regime democrático haja embate entre os poderes, mas no caso do Trump não é isso, ele é adversário dos outros poderes, é inimigo, ele se comporta como imperador que quer acabar com outros poderes. Ele sabe que não pode, mas faz o possível para acabar”, declarou.
“Você imagina se fosse na Bolívia, e a Corte Suprema parasse a contagem porque passou do prazo e desse a vitória para o candidato do Evo Morales ou para o Evo. Imagina qual seria a reação da OEA (Organização dos Estados Americanos), da grande mídia brasileira, diriam que está provado que é um governo autoritário. Se fosse na América Central, diriam que é uma república de bananas. Mas não, nos Estados Unidos é assim e todos aceitam”, continuou.
“Agora, é uma coisa anunciada. A verdade é que, enquanto houver o colégio eleitoral, sempre haverá possibilidade de ganhar com minoria no voto popular. Isso colocou luz em vários problemas da democracia norte-americana, mas nem por isso ela deixe de ter seus méritos”, completou o ex-ministro brasileiro.
Sistema permite distorções
O resultado das eleições presidenciais dos Estados Unidos é decidido por um sistema de duas etapas, em que os votos em um estado são seguidos por uma segunda votação pelo Colégio Eleitoral, em 14 de dezembro. Cada estado tem um número específico de delegados, com base na população, e cabe a eles votar pelo vencedor certificado do voto popular em cada estado.
Um candidato deve obter no mínimo 270 votos de um total de 538 para reivindicar a vitória. A contagem eleitoral é conduzida pelo novo Congresso, que será empossado em 3 de janeiro. Os votos são contados formalmente em uma sessão conjunta de Câmara e Senado até 6 de janeiro.
O dia 8 de dezembro é a data de “porto seguro”, com os estados apresentando listas de delegados certificados ao Arquivista dos Estados Unidos. No entanto, caso a apuração contínua de votos ou batalhas jurídicas impeça um estado de fazê-lo, há uma disposição da lei federal que permite que a legislatura estadual mencionada convoque e indique uma lista de delegados antes da contagem final dos votos.
Se o governador e a legislatura estiverem divididos entre os partidos em um determinado estado, com o governador certificando oficialmente a lista de delegados, um estado pode apresentar duas listas de delegados.
A controvérsia aqui é que uma legislatura partidária poderia potencialmente indicar uma camada de delegados que apoie o candidato que acaba perdendo o voto popular do estado. Por exemplo, estados decisivos como Pensilvânia, Michigan, Wisconsin e Carolina do Norte têm governadores democratas e legislaturas controladas pelos republicanos.
Diante das listas rivais de delegados no mesmo estado, a Câmara e o Senado votam para definir qual será aceita. A lista eleitoral é contada se houver concordância, sendo a lista certificada pelo governador a que prevalece nos casos em que a Câmara e o Senado discordam, conforme a Lei do Colégio Eleitoral.
Uma disputa eleitoral no Congresso precisa ser resolvida até 20 de janeiro, quando a Constituição determina o final do mandato presidencial. Se o Congresso não declarar um vencedor até então, a Lei de Sucessão Presidencial determina que a presidente da Câmara, atualmente a democrata Nancy Pelosi, assuma a presidência interina.
Normalmente, o Congresso certifica os resultados do Colégio Eleitoral duas semanas antes do dia da posse. No entanto, como Trump e sua campanha lançam desafios legais para contestar a contagem dos votos, caso Trump opte por ficar na Casa Branca até que a batalha judicial seja resolvida, o atraso resultante na produção de uma decisão pelo Congresso pode levar a corrida presidencial para um “território desconhecido”.
No final, ambas as partes podem pedir à Suprema Corte que resolva um impasse no Congresso. E nessa corte, Trump tem o dobro de votos. Mas alguns analistas políticos questionam a estratégia. O entendimento é o de que o tribunal tem sido muito cauteloso sobre se envolver em temas eleitorais, regidos pelas leis estaduais.
“A Suprema Corte não tem que intervir”, afirmou Derek Muller, professor de direito da Universidade de Iowa. “Acho que era necessário no ano 2000, mas não está claro que seja o mesmo agora.”
“Trump sabe que perdeu, mas está tentando usar o sistema judicial, como sempre fez em seus negócios, para mudar a situação, mas não vai ter sucesso”, aposta James Naylor Green, professor da Brown University, de Providence, Rhode Island.
“Ele simplesmente perdeu e espera que, ao ir aos tribunais e exigir a recontagem dos votos, possa ganhar tempo para mudar a dinâmica da disputa. Todos os votos têm de ser certificados até 14 de dezembro, e ele espera que, em um ou outro estado, eles consigam fazer com que uma legislatura republicana indique uma lista diferente de eleitores para um estado em que Biden venceu. Nesse ponto, a Suprema Corte não tem base para intervir na contagem dos votos”, conclui o cientista político.
Da Redação