A cidade do Rio de Janeiro comemorou no último dia 1º de março seus 456 anos de existência. Porta de entrada do turismo nacional, tambor cultural do Brasil, povo mais acolhedor do mundo, natureza exuberante, a cidade maravilhosa ainda tem muito a comemorar. No entanto, o Rio é uma cidade partida, social e racialmente.
As desigualdades são históricas. Mas, nos últimos seis ou sete anos, o Rio sentiu como o resto do país, o retrocesso político em que uma parcela grande da sociedade que é racista e saiu do armário, foi às ruas, derrubou um governo democrático e elegeu pelo voto o atual governo, cujas personagens idolatram a ditadura militar, defendem a tortura, se voltam contra os poderes instituídos e o estado democrático de direito e atacam movimentos negros, mulheres e LGBTs.
A cidade e o estado sofreram também, nos últimos anos, com uma corrupção sistêmica que resultou na prisão de governadores, deputados estaduais, membros do Tribunal de Contas e magistrados. No entanto, em muitos casos, até no julgamento, condenações e ato das prisões há diferenças entre um réu negro e pobre e outro branco, rico ou de classe média. Especialmente na reação da sociedade.
Vivemos um clima de hostilidade e intolerância, em que o aparato policial é incentivado a atirar para depois perguntar, sempre nas favelas e periferias, fazendo jus a frase do governador afastado, Wilson Witzel, que responde a um processo de impeachment, de “atirar na cabecinha”. Moralista de goela, eleito na onda bolsonarista, Wiltzel responde este processo por liderar esquema de corrupção. Porém, mesmo afastado, a linha política que ele defende continua viva, não só em nível estadual como também federal.
Dados oficiais mostram que 80% das pessoas mortas por policiais são negras, a maioria delas, jovens das favelas e periferias. A sociedade se acostumou e achar natural as ações policiais em favelas, com invasões de domicílios, violência e abusos que jamais seriam admitidos num condomínio de luxo do Leblon ou da Barra da Tijuca.
Recentemente a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber criticou a forma com que a polícia federal prendeu desembargadores do TRT-RJ (Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro) e advogados nos condomínios e mansões onde moravam. Segundo o MPF (Ministério Público Federal), os presos têm ligação com o esquema de corrupção liderado pelo governador afastado do Rio, Wilson Witzel (PSC).
Não me vem na memória nenhum pronunciamento da ministra ou de qualquer membro do STF indignado com a prisão cotidiana de negros pobres e não são poucos os casos em que, depois de presos, a Justiça descobre serem inocentes. Sem falar naqueles que, mesmo não tendo cometido crime algum, continuam presos pela demora do judiciário e por não possuírem dinheiro para contratar advogados e poder agilizar a soltura.
Este exemplo da indignação da ministra dizendo que os desembargadores “não poderiam ser expostos”, por serem presos em suas residências, quando nas favelas estas ações são cotidianas, revela o quanto o racismo estrutural está presente em nossos dias. E é também intrigante como a mídia trata de esconder do noticiário casos como estes que envolvem uma elite e de tal forma que ninguém sabe que fim deu o processo, se continuam presos ou, como quase sempre acontece, se já estão em liberdade.
Fato é que a cidade do Rio de Janeiro, ressonância política e cultural do Brasil, apesar de continuar linda em sua natureza exuberante de mar e montanha, continua, mais do que nunca, partida, pelas desigualdades sociais e econômicas e pelo preconceito racial da sociedade, sistêmico e estrutural.
Apesar desta onda de intolerância contra negros, pobres, mulheres e homossexuais que se abate na cidade do Rio de Janeiro, que no passado foi vanguarda em movimentos políticos e culturais sinto que começa a renascer uma reação indignada contra os que insistem em manter a cidade partida, nos campos social e racial. Que o Rio volte a ser vanguarda e possamos libertar e unir uma cidade bela como nenhuma outra, porém, mais do que nunca, partida e manchada de sangue pela violência e pela discriminação contra negros e pobres.
Almir Aguiar é membro do Coletivo Estadual de Combate ao Racismo do PT/RJ e Secretário de Combate ao Racismo da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro-Contraf-CUT