Nota do Coletivo Nacional de Saúde do Partido dos Trabalhadores
Sobre a PEC 10/2022, do Senador Nelsinho Trad – PSD/MS – privatização do sangue humano.
Vimos que pretende alterar o art. 199 da Constituição Federal com condições e os requisitos para a coleta e o processamento de plasma humano, que faz retroagir ao que se conquistou nas décadas de 1980 e 1990, com o fim dos Bancos de Sangue privados.
Na década de 80, com o surgimento da Aids, a hemoterapia brasileira verificava que o elevado número de casos de contaminação pelo HIV fez com que a transfusão chamasse a atenção da sociedade culminando na proibição definitiva da doação remunerada. A Constituição de 1988 inclui o artigo 199, proibindo toda e qualquer forma de comercialização do sangue ou de seus derivados, luta liderada pelo cartunista e escritor mineiro Henfil, que cunha, com o irmão Betinho, o mote que empolga a opinião pública: “Salvem o sangue do povo brasileiro”. Henfil, que era hemofílico e, como tal, politransfundido, acabou morrendo de Aids em 1989. A Lei Federal n.º 10.205, promulgada em março de 2001, regulamenta o parágrafo 4 do artigo 199. [1]
O parecer da relatoria, Senadora Daniela Ribeiro – PSD/PB, a indicação de remuneração do Plasma/Sangue e assim, percebe o corpo humano – especialmente dos indivíduos vulneráveis – como parte da produção industrial mercantilista e não como corpo a ser protegido pelo Estado.
O Setorial Nacional da Saúde do PT, partilha com a Sra. Presidenta, os companheiros do DN e do Legislativo sua posição sobre a PEC 10/2022, sobre o parecer da Senadora Daniella Ribeiro ignora a retomada do desenvolvimento da estatal.
Já houve tentativas de trazer a iniciativa privada ao processamento de hemoderivados em um passado recente (Tecpar, Octapharma – 2018[2]). A tempestividade da PEC sugere que, dado o efetivo desenvolvimento da Hemobrás, este momento possa ser o último em que se “justificaria” a inserção dessa modalidade de processamento. Oparecer segue defendendo aalteração no texto constitucional argumentando “avanços legislativos” que permitiram a “remuneração a doadores de plasma” em outros países. Em seguida, menciona o tamanho da população brasileira basicamente como uma oportunidade de negócios na “captação mundial do plasma”. Assim, menciona-se a possibilidade de “atrair investimentos no setor” e de “exportar medicamentos”.
Claramente, neste trecho, saímos do terreno da saúde pública para adentrar o mundo dos negócios e do comércio exterior.
Interessa ao país que o sangue dos seus habitantes – mais pobres – entre no cômputo do PIB?
Enfatizamos que, neste âmbito internacional, a Organização Mundial da Saúde e o Conselho Europeu recomendam que a doação seja voluntária e gratuita[3]. Cabe lembrar que houve crescimento da doação voluntária não remunerada entre 2008 e 2018, demonstrando que a retração relatada durante o período mais crítico da pandemia de COVID-19 não se relaciona ao desinteresse da população ou dificuldades relacionadas à doação voluntária não remunerada.
Em 79 países, mais de 90% do suprimento de sangue é obtido de doadores voluntários não remunerados, incluindo os 64 países com 100% (ou mais de 99%) do estoque de sangue para transfusão proveniente de doações não remuneradas. Entre esses, predominam os países com rendas alta (38) e média (33) e apresentam sistemas de coleta e transfusão mais seguros, com menor taxa de contaminação para doenças transmissíveis pelo sangue, como as Hepatites B e C, HIV e Sífilis. É ao lado deles que o Brasil deve estar.
A Política Nacional do Sangue foi estabelecida apenas em 2001 através da Lei 10.205, definindo princípios e diretrizes que permitiram o fim da exploração de pessoas desesperadas que buscavam na venda de seu sangue uma forma de sobreviver, da distribuição irregular de serviços de transfusão no país, levando à escassez de componentes do sangue e à transmissão de doenças por meio do que deveria ser uma solução terapêutica.
A indústria privada de extração de plasma nos Estados Unidos, por exemplo, permite até 104 doações por ano, por pessoa (2x por semana). Há escassez de estudos quanto aos efeitos de um tal ritmo de doação nos médio e longo prazos para a saúde de uma pessoa. A indústria farmacêutica coloca seu foco sobre os efeitos da doação de plasma para o paciente, sem aprofundar os estudos sobre o doador.
O artigo “A Interconexão entre Doação de Plasma Sanguíneo e Pobreza nos Estados Unidos”[4], publicado em 2021 no Journal of Sociology & Social Welfare demonstra uma coincidência entre a localização de centros de plasma e regiões onde residem mais indivíduos abaixo da linha da pobreza.
O Brasil trabalhou arduamente para sair do grupo de países que permitem que o corpo humano seja alvo de comércio, inclusive na área de pesquisa. Os mesmos argumentos que embasam esta mudança na constituição podem abrir precedente para que além do plasma, outros tecidos e órgãos humanos possam ser alvo de mercantilização.
Sublinhamos mais uma vez: o aumento da doação de plasma – via remuneração –, segundo o próprio parecer da relatora, visa a atração de investimentos financeiros com objetivo de exportação. Não se trata de saúde pública.
Em parecer dos Hemocentros Unidos, há questões práticas, para além das éticas, que demonstram que a remuneração de doadores de plasma pode ser muito prejudicial para o sistema de saúde como um todo:
– a prática de remunerar doador poderá afetar com alta gravidade a qualidade dos serviços, uma vez que aumenta a vulnerabilidade, porque pessoas não aptas podem vir a doar, interessadas na remuneração.Como a redução do risco transfusional depende em muito da sinceridade e honestidade da pessoa que quer doar, a partir de respostas dadas às perguntas realizadas na etapa de triagem clínica de doadores de sangue, a motivação relacionada ao recebimento de ganhos pecuniários pode afetar esse processo.
– se os doadores forem pagos para doar plasma poderá faltar doadores para outros componentes, cujos estoques permanentemente se encontram em quantidades críticas, trazendo risco de desabastecimento e prejuízo para a assistência aos pacientes.
– a possibilidade de aplicação das regras de mercado ao plasma para produção de hemoderivados pode significar a priorização de mercados com maior poder aquisitivo em detrimento de outros gerando uma situação de competição e fragilizando o acesso da população brasileira aos derivados do plasma, mesmo aqueles produzidos a partir do plasma obtido de doadores brasileiros.
– Há riscos quanto à coexistência de doações voluntárias e pagas. Segundo a European Blood Alliance (2016), “Os pagamentos a doadores de sangue e plasma por fornecedores comerciais corroem a atual população de doadores baseada na comunidade e não remunerada, que é o elemento-chave para garantir um sangue sustentável. Em países com sistemas duais (onde coexistem coleta não remunerada e paga), os estabelecimentos que coletam componentes para transfusão encontram dificuldades crescentes no recrutamento e retenção de doadores não remunerados”
Existe uma preocupação crescente de que a coexistência de sistemas de doação voluntária e paga para produção de hemoderivados signifique um retrocesso mundial e seja uma situação particularmente prejudicial à autossuficiência mundial para a segurança e estabilidade dos estoques de sangue, seus componentes e derivados.
A doação de sangue (e de qualquer componente, entre eles o plasma) é um ato de defesa da vida e de cidadania consciente, como manifestação do princípio fundamental constitucional, em par com a dignidade da pessoa humana, visando a proteção dos pacientes receptores de sangue, a segurança e a preservação do serviço hemoterápico.
A legislação brasileira é adequada para dar execução aos princípios e disposições constitucionais e legais sobre doação de sangue e órgãos, para as finalidades já previstas no art. 199/CF, nas leis nº 10.205, de 21 de março de 2001, que regulamenta o § 4o do art. 199 da Constituição Federal, relativo à coleta, processamento, estocagem, distribuição e aplicação do sangue, seus componentes e derivados, que estabelece o ordenamento institucional indispensável à execução adequada dessas atividades, e dá outras providências, bem como pela Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências, e toda a legislação que lhes são correlatas.
O entendimento de que essa modificação na CF signifique modernizar a legislação brasileira e trazer soluções para os pretensos problemas de atendimento apontados pelos autores, está em dissonância com fatos e resultados obtidos em países que se lançaram nessa aventura décadas atrás e que não deveriam ser usados como exemplos a serem seguidos, mas como experiências a serem evitadas para o bem da nossa população.
A melhoria nos índices de doação, tanto de sangue e componentes, quanto de órgãos, para as finalidades constitucionalmente previstas, será obtida com a maior conscientização das pessoas, das instituições, dos governos, enfim, da sociedade em geral, para a necessidade da doação voluntária e altruísta, bem como da destinação mais adequada de recursos para a estruturação dos serviços pertinentes, entre eles a HEMOBRÁS, o SUS como um todo e os Hemocentros.
Assim, defendemos a Não Aprovação da PEC 10/2023 e submetemos nossas razões para análise desse Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores e Trabalhadoras, com a finalidade de subsidiar e orientar a nossa bancada de deputados e deputadas, senadores e senadoras no Congresso Nacional.
Saudações Petistas
Coletivo Nacional de Saúde do PT
[1]http://www.hemominas.mg.gov.br/doacao-e-atendimento-ambulatorial/hemoterapia/sangue-breve-historia
[2]Barros quer ‘fábrica de sangue’ em terra natal – Anahp (consultado em 27/04/2023); De saída do ministério, Barros anuncia acordo milionário com o Tecpar (gazetadopovo.com.br) (consultado em 27/04/2023).
[3] “Artigo 110º: Os Estados-Membros tomarão todas as medidas necessárias para promover a autossuficiência da Comunidade em sangue e plasma humanos. Para o efeito, estimularão as dádivas voluntárias e não remuneradas de sangue e tomarão todas as medidas necessárias para o desenvolvimento da produção e da utilização dos produtos derivados do sangue e do plasma humanos
provenientes de dádivas voluntárias e não remuneradas. Os Estados Membros notificarão a Comissão das medidas adoptadas. – DIRETIVA 2001/83/CE de 6/11/2001
[4]The Interlinkage between Blood Plasma Donation and Poverty in the United States (umich.edu) (consultado em 27/04/2023)