Se o processo da Lava-Jato é tão intrincado, seria razoável que delimitassem rigorosamente seu escopo e operassem com mais cautela.
O paradoxo é conhecido: num mundo em que todos mentem, o tempo todo, se alguém chama o outro de mentiroso não há como decidir se ele mente ou diz a verdade. Estamos longe de algo assim, mas o Brasil oficial se aproxima muito da imagem desse mundo tresloucado.
Outro dia mesmo, aconteceu comigo. Fui a um cartório para lavrar uma procuração e o funcionário que me atendeu negou-se a emitir o documento porque a foto em minha carteira de identidade não era válida. “Como assim, muito antiga?” — perguntei esforçando-me para conter a irritação que já assomava. “Mas qual o problema? O que o tempo da foto tem a ver com isso? E se meu rosto tiver sido afetado por um acidente, a minha carteira, embora nova, será recusada?”
E logo passei a outra abordagem. “Eu sou cliente deste cartório há mais de vinte anos; tenho firma reconhecida. Se vocês certificam qualquer documento meu (mesmo para transações importantes) depois de conferirem a assinatura, porque não vão carimbar uma procuração que eu faço in loco, desde de que atestada sua autenticidade?”
Não houve meio de convencer o funcionário. E olha que o objeto da procuração era dos mais banais: autorizar um advogado a fazer pequena retificação em documento emitido em outro estado.
Diante de minha insistência, fui conduzido ao tabelião, que me explicou tudo: ele compreendia minhas razões, mas não podia desrespeitar a disposição do desembargador. O máximo que podia fazer era oferecer-me os serviços de um mensageiro, sem custo adicional, para que este apanhasse em minha residência um documento de identidade válido.
Achei razoável a solução, e depois de meia hora de espera saí do cartório com a minha modesta procuração devidamente autenticada.
Relembro esse fato anedótico, igual ou parecido a tantos outros que o leitor certamente terá presenciado, porque ele põe em relevo a premissa que parece reger as relações dos indivíduos no Brasil com o mundo legal: a presunção de que todos mentem, todos são salafrários, até prova em contrário.
Este não é o lugar para ensaiar uma sociologia desse aspecto mórbido de nossa sociabilidade, mas convém refletir sobre a forma como ele incide em nossa vida política, mormente agora, sob a comoção provocada pela operação Lava Jato.
Vejam a notícia que explodiu outro dia, em todos os jornais: “Dirigente petista é denunciado pelo MP”. Na acusação formal acolhida pelo juiz Sergio Moro, os promotores do MPF apontam João Vaccari Neto, em associação com o ex-diretor de Serviços da Petrobrás, Renato Duque, como responsável pelo desvio para o PT de 200 milhões de dólares, provenientes de contratos firmados com a Petrobrás. A acusação baseia-se em depoimentos de doleiros e executivos das empresas envolvidas, obtidos em acordos de delação premiada.
Não é a primeira, e está longe de ser a última acusação formulada contra homens públicos com tal tipo de fundamentação. Ora, a lei prevê e a jurisprudência confirma: nenhuma condenação será produzida com base em informações colhidas em acordos de delação premiada. Preciosos como possam ser como meios para se chegar à verdade dos fatos, os dados obtidos dessa forma precisam estar apoiados em elementos probatórios adicionais a fim de produzir o efeito visado, vale dizer a condenação do incriminado.
No caso em questão, esses elementos são sobremaneira frágeis. Além dos depoimentos dos “colaboradores” — que por serem partes interessadas na solução da lide, não valem como provas testemunhais — a peça acusatória arrola contribuições oficiais ao PT, e correlaciona as datas de cada depósito àquela da liberação de recursos, em um dos projetos da Petrobrás investigado. A lógica do procedimento é claramente circular: parte-se do relato do (s) “colaborador (es)” e buscam-se elementos para comprovar sua veracidade. Não parece haver espaço aí para a dúvida, nem mesmo diante de coisas intrigantes, como a acentuada disparidade entre os percentuais relativos às parcelas supostamente pagas a título de propina ao PT e os valores correspondentes liberados para a empresa doadora pela Petrobrás.
Igualmente canhestra é a invocação do conceito de “domínio de fato na peça elaborada pela força-tarefa da Lava-Jato, como se vê nesta passagem: “Se o esquema, como se evidenciou … era um esquema que servia também a interesses de partido, é inconcebível que seu tesoureiro desconhecesse o esquema. Não apenas o conhecia, mas o comandava direta ou indiretamente, em conjunto com terceiros, tendo pleno domínio dos fatos.” (p. 179). Ora, o que está em causa na denúncia é o suposto fato – pagamento de propina sob disfarce de doação oficial ao PT — e o único membro do PT envolvido em sua produção é o nominado João Vaccari Neto. Se o fato é verdadeiro, evidentemente ele está sob o seu “domínio” — assim como “domínio do fato” têm os “colaboradores” premiados sobre os favores que lhes valeram as fortunas ora reveladas.
Os depoentes falam em dezenas de encontros com o tesoureiro do PT, que teriam ocorrido numa fileira de hotéis e restaurantes. Curiosamente, a peça da Força Tarefa da Lava Jato não traz nenhuma prova testemunhal desses conciliábulos. Mas como,? Não terá restado nenhum traço dessas supostas reuniões na lembrança de gerentes, ou dos garçons que trabalhavam nos referidos locais?
Talvez o tempo requerido para buscar esses elementos adicionais, que poderiam corroborar a informação dos “colaboradores”, tenha sido considerado grande demais. E o tempo é uma variável fundamental em um inquérito como o da Lava Jato — operação cujo objeto original eram as atividades de um doleiro arquiconhecido e que logo foi transformada na mais ampla e complexa investigação sobre crimes financeiros de nossa história.
Mas, como diz o ditado, a pressa é inimiga da perfeição. Se o processo é tão intrincado, seria razoável esperar que a equipe encarregada do inquérito delimitasse rigorosamente o seu escopo e operasse com mais vagar, a fim de apresentar no final um conjunto probatório tão sólido quanto possível. Mas não é isso o que ocorre. A investigação em torno dos desvios na Petrobrás ainda está em curso, e o grupo que nele trabalha já fala em estender o inquérito às obras do setor hidroelétrico e …. sabe-se lá a que outros ramos de atividade econômica.
Parece haver aí uma contradição insanável, mas ela se resolve facilmente quando nos perguntamos sobre o objetivo buscado com o inquérito. Em teoria o que se almeja com ele é instruir adequadamente a denúncia, para conseguir a devida condenação do réu. Mas em casos como o da Lava Jato, esse não é o único objetivo e talvez não seja o principal. É o que se pode depreender da passagem de um antigo artigo do Juiz Sergio Moro que passo a citar.
“Além disso, a ação judicial não pode substituir a democracia no combate à corrupção. É a opinião pública esclarecida que pode, pelos meios institucionais próprios, atacar as causas da corrupção. Ademais, a punição judicial de agentes públicos corruptos é sempre difícil, se não por outros motivos, então pela carga de prova exigida para alcançar a condenação em processo criminal. Nessa perspectiva, a opinião pública pode constituir um salutar substitutivo, tendo condições melhores de impor alguma espécie de punição a agentes públicos corruptos, condenando-os ao ostracismo.”
Sergio Moro é um juiz muito respeitado pelos seus pares, mas ele não fala como Juiz quando discute futebol. Tampouco o faz nesse parágrafo – nem como Juiz, nem como jurista. O que temos aqui é uma clara tomada de posição a respeito de um bem público — a probidade administrativa — e a indicação de meios julgados adequados para assegurá-lo. Em ambos os aspectos, quem fala aqui é o político, e é como tal que seu juízo deve ser avaliado.
O que está em questão no caso não é a relevância do referido bem — há muito convertido em princípio basilar da administração pública moderna — mas sua ordenação no conjunto dos objetivos que informam a ação do governo — estabilidade econômica e crescimento; sustentação do nível de emprego e inclusão social, para citar alguns dos mais óbvios — , e o incumbente da tarefa nada trivial de compatibilizá-los. Esse papel é do político — na democracia legitimado pelo voto. Mas o político Moro não faz nada disso. Ao transformar o expurgo da corrupção em um fim último, ele se dispõe a pagar o preço da garantia de direitos individuais – claramente violados quando a opinião pública é açulada contra pessoas, antes mesmo de elas serem formalmente acusadas de qualquer crime — e a ignorar o custo de sua cruzada para a sociedade.
Essa observação nos devolve ao paradoxo do mentiroso. Os “colaboradores” que assistem os promotores e o juiz Sérgio Moro na Operação Lava Jato são réus confessos, farsantes incorrigíveis, finórios consumados. Em princípio, a palavra deles não mereceria crédito — salvo se apoiada em provas contundentes, que são de produção muito difícil, como o próprio Moro reconhece. Mas, como partimos do pressuposto de que todos mentem, a declaração deles tem fé pública, é tomada como pura expressão da verdade.
Não exatamente. Seria assim se estivéssemos nos movendo no mundo abstrato da lógica. Mas nós estamos no Brasil, e aqui os supostos que regem o debate público nada têm de universais. A valência da palavra do mentiroso se altera quando mudam os seus alvos. Ela é fulminante quando dirigida a adversários/inimigos, suspeitos por definição, e inócua quando atinge amigos — homens de bem, sabidamente honrados.
Como o mecanismo do voto, com toda as suas virtudes, tem o defeito de não discriminar corretamente essas duas classes, é bom que ele passe pelo filtro da palavra bandida.
Podemos denominar esse dispositivo de sequestro do voto.
(Artigo originalmente publicado no site “Carta Maior” em 24 de março de 2015)
Sebastião Velasco é professor titular da Universidade Estadual de Campinas e membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais