As mudanças no comportamento da sociedade em decorrência da pandemia do coronavírus, que obrigou a adoção de medidas de isolamento em escala global, preocupa especialistas de saúde, especialmente na área de psiquiatria e psicologia. A pressão provocada pelo distanciamento e o medo da doença afetam diretamente pessoas com quadros de depressão, ansiedade, pânico e distúrbios como a esquizofrenia. A sobrecarga emocional gerada pela virulência com a qual o vírus se espalhou pelo mundo afeta também os próprios profissionais de saúde, sobretudo os que estão na linha de frente dos hospitais e enfermarias, trabalhando sob forte tensão.
Um relatório divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) alerta para os riscos de um aumento considerável de pessoas com problemas de saúde mental nos próximos meses. A agência recomenda aos governos o fortalecimento dos serviços de saúde por meio de mais investimentos no setor. “O impacto da pandemia na saúde mental das pessoas já é extremamente preocupante”, afirmou Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS. “O isolamento social, o medo de contágio e a perda de membros da família são agravados pelo sofrimento causado pela perda de renda e, muitas vezes, pelo emprego”.
A organização apresentou um estudo conduzido na Etiópia no mês passado. A pesquisa apontou um aumento de três vezes na prevalência de sintomas de depressão em comparação ao período anterior à pandemia. De acordo com a OMS, grupos populacionais específicos correm risco de desenvolver algum distúrbio psicológico relacionado ao Covid-19. Profissionais de saúde da linha de frente, confrontados com cargas de trabalho pesadas, decisões de vida ou morte e risco de infecção, são os mais afetados. Na China, a depressão atingiu 50% dos profissionais de saúde. 45% relataram sintomas de ansiedade e 34% descreveram sofrer de insônia. No Canadá, 47% dos profissionais de saúde relataram a necessidade de suporte psicológico.
No Brasil, um estudo coordenado pela Fiocruz apresentou resultados semelhantes. Já nas primeiras semanas de isolamento social, grande parte da população brasileira apresentou variações no estado de ânimo, revelou o levantamento, cuja primeira etapa foi divulgada na sexta-feira (22). Segundo o estudo, 40% disseram sentir tristeza ou depressão e 54% relataram ansiedade ansiosos nervosismo frequente.
“Não esperava um percentual tão alto de pessoas que se sentiram tristes ou deprimidas, assim como das que se sentiram ansiosas ou nervosas”, afirmou a pesquisadora Celia Landmann Szwarcwald, do Icict/Fiocruz, coordenadora do trabalho, ao portal da Fiocruz. Mais de 40 mil brasileiros responderam a um questionário online, dando subsídios para a primeira etapa da pesquisa. Os dados foram coletados entre 24 de abril a 8 de maio.
Pânico
“Quando a pandemia chegou no nosso ambiente de trabalho, houve muito pânico. Tivemos casos de profissionais que pediram demissão”, relata o supervisor do Serviço de Psicologia de um hospital do Sistema Único de Saúde (SUS) da Grande São Paulo. Segundo o psicólogo, que falou à reportagem da Agência PT de Notícias sob anonimato, os profissionais de saúde que estão nos hospitais atuam sob enorme pressão. Muitos deles trabalham em plantões dobrados, convivendo diariamente com o temor de serem infectados. “O desgaste vem do medo dos profissionais de pegarem a doença, então há uma tensão constante”, afirma. “As pessoas têm medo, estão com muito medo”.
De acordo com o psicólogo, na medida em que não há uma clara percepção de quando a crise irá passar, a perspectiva é a de um agravamento do quadro. “A tendência, para as pessoas que estão trabalhando na ponta com esse nível de tensão, é que elas cheguem a um esgotamento”. O supervisor conta que vários profissionais já foram afastados, alguns com diagnóstico da doença. Outros aguardam o resultado de testes. “A equipe trabalha no limite. Quem está na linha de frente são sempre as mesmas pessoas. Como a perspectiva de contaminação a longo prazo é alta, há muita apreensão”.
Aumento de óbitos
O aumento excessivo do número de óbitos, fato sem precedentes na rotina do hospital, também afetou os especialistas de saúde. “Estou há 20 anos trabalhando em hospital e nunca vi um cenário desse”, afirma o psicólogo. “Em três dias, morrer 11 pessoas é algo inédito, observa. “Isso gera uma repercussão enorme nos profissionais de saúde”. No momento, mais de 30 leitos têm pacientes em estado grave, vários entubados.
O psicólogo avalia que as repercussões psicológicas da pandemia podem afastar vários profissionais de saúde nos próximos meses, prejudicando ainda mais o front de combate à doença. “O esgotamento físico e mental ainda vai afastar muitos profissionais”, prevê. À medida que as pessoas passam por uma estafa física e emocional, pontua, “isso vai baixando a resistência e causando maiores riscos para a saúde”.
Luto interrompido
Além do pânico de uma contaminação, pessoas que perderam familiares e amigos precisam lidar com a dor da perda no contexto da doença, sem velórios e com processo de luto interrompido. “Não se pode velar e existe uma espécie de congelamento da emoção”, atesta a psiquiatra espanhola Carmen Moreno, em entrevista ao diário ‘El País’.
Segundo a psicóloga Sara Liébana, também ouvida pela reportagem, parentes sentem-se impotentes por não poderem nem compartilhar a dor da perda. “Nós os incentivamos a entrar em contato com seus familiares através de videoconferências em grupo, e dizemos a eles que poderão se despedir quando isto acabar”.
O psicólogo do SUS considera que as dificuldades para famílias realizarem velórios e funerais trará consequências negativas para o estado psicológico dos parentes das vítimas da pandemia. “O processo de luto fica muito prejudicado, e certamente haverá um impacto para as famílias a longo prazo”.
Para o psiquiatra Enrique García Bernardo, quadros de depressão aparecerão em decorrência de tipos diferentes de perda. “As depressões terão a ver com as perdas, as reais, as dos nossos mortos, e outras de diferente dimensão: a renúncia a um status, a uma forma de vida pelo desemprego ou a ruína dos autônomos”, diz Bernardo, também ao ‘El País’. “O que inclui o sujeito isoladamente (com a perda de sonhos, expectativas), a família (perda de horizontes) e o aspecto social (o emprego)”.
Jovens afetados
Com o fechamento de escolas, a saúde mental de crianças e adolescentes merecem especial atenção, aconselham as Nações Unidas. A pesquisa da Fiocruz apresentou um resultado surpreendente entre a população jovem. Entre adultos jovens, com idades entre 18 e 29 anos, 54% disseram sentir-se tristes e deprimidos e 70% se sentiram ansiosos e nervosos com frequência, os maiores percentuais por faixa etária. “Em geral são pessoas que têm uma vida social intensa, e na ausência disso, passam horas nas telas de tablet, computador, ou celular”, constata Célia Szwarcwald.
Segundo dados da OMS, pais na Itália e na Espanha também relataram que seus filhos tiveram dificuldades em se concentrar, além de irritabilidade, inquietação e nervosismo. Outro levantamento, divulgado pelo diário português ‘Público’, informa que, diante da primeira daquela que é a primeira grande crise de suas vidas, os jovens estão de fato mais tristes e ansiosos.
“Os mais velhos podem não ter imunidade para o vírus, mas parecem ter mais imunidade para responder a esta situação nova. Relativizam mais, porque já enfrentaram outras dificuldades e passaram por várias crises de saúde pública, como a doença da vacas louca, a gripe aviária, o ebola. Para os mais jovens, esta é a primeira grande ameaça das suas vidas”, analisa Henrique Barros, presidente do ISPUP, especialista em saúde pública e epidemiologista, em entrevista ao ‘Público’.
“Sabemos que os jovens, principalmente os adolescentes, dependem muito das conexões com seus pares”, observa a psiquiatra do Imperial College de Londres, Martina Di Simplicio, em depoimento ao portal da instituição. “O desenvolvimento do cérebro adolescente é fortemente influenciado pelo aumento das conexões sociais com outros jovens. Não temos certeza de qual será o impacto da situação atual, onde os jovens ficaram repentinamente impedidos de ter interações com seus amigos pessoalmente”, observa.
Subfinanciamento
Martina também explica que os impactos econômicos da pandemia sobre os serviços de saúde mental tornarão ainda mais frágeis os sistemas de proteção social. “Penso que o bloqueio e a pandemia tornarão aqueles que já são vulneráveis ainda mais vulneráveis. Os serviços de saúde mental são subfinanciados há anos, assim como as pesquisas em saúde mental”, argumenta. “O risco é que o ônus da saúde mental se torne mais agudo e complexo, e um financiamento maior seja necessário em um período já com poucos recursos”.
No Brasil, o subfinanciamento que vinha predicamento o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS) nos últimos anos foi agravado com a Emenda do Teto de Gastos, que já tirou mais de R$ 22,5 bilhões em apenas dois anos. A Emenda Constitucional 95/2016, promulgada no governo Temer e mantida por Bolsonaro, congelou por 20 anos os recursos destinados à saúde pública, consolidando o processo de asfixia do sistema.
“Nossa realidade, desde antes da pandemia, constatava o aprofundamento do histórico subfinanciamento, a deliberada precarização e terceirização do trabalho e os ataques ao modelo comunitário de cuidado em saúde mental, inflacionando o financiamento das instituições de caráter asilar”, lamenta a professora do Departamento de Políticas Públicas e Saúde Coletiva da Universidade Federal de São Paulo, Luciana Togni de Lima e Silva Surjus, na última edição da publicação Cadernos Brasileiros de Saúde Mental.
Maior investimento em saúde mental
A OMS adverte que a interrupção dos serviços de apoio psicossocial em muitos países agravou o quadro de distúrbios psíquicos. Os sistemas de assistência também foram afetados pela infecção de integrantes de equipes de saúde mental e pelo fechamento de serviços presenciais. Serviços comunitários, como grupos de autoajuda para dependência de álcool e drogas, não funcionam há meses.
“Agora está claro que as necessidades de saúde mental devem ser tratadas como um elemento central de nossa resposta e recuperação da pandemia do COVID-19”, Tedros Adhanom Ghebreyesus. “Essa é uma responsabilidade coletiva dos governos e da sociedade civil”. Para ele, “uma falha em levar o bem-estar emocional das pessoas a sério levará a custos sociais e econômicos a longo prazo para a sociedade”. A OMS defende que é fundamental a manutenção do apoio a ações comunitárias que fortaleçam a coesão social e reduzam sentimentos de solidão, principalmente de grupos mais vulneráveis, como os idosos.
Apesar das deficiências, o SUS mantém-se na dianteira como o modelo ideal para o enfrentamento dos efeitos da pandemia na saúde da população. “O SUS, mesmo subfinanciado por três décadas e desfinanciado sob a vigência da Emenda Constitucional 95, está na vanguarda do enfrentamento da COVID-19 no Brasil”, defende o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), por meio de nota. “A pandemia demonstra, de maneira alarmante, para os ideólogos do individualismo sem limites, que a Saúde não pode ser tratada sem dimensão de coletividade”, conclui a entidade.
Da Redação, com informações de Fiocruz, Cofen, OMS, Imperial College of London e agências internacionais