A agressividade da direita fascista e as tentativas de golpe paraguaio no país não são propriamente originais nem se originam, principalmente, das dificuldades econômicas que atravessamos ou das dificuldades políticas graves da Coalizão governista. Nem se origina – embora seja estimulada – basicamente pelas manipulações da grande mídia ou pela exorbitância da taxa de juros. Não tem suas bases na insegurança pública do país, cuja responsabilidade primária é dos Estados, ou mesmo nas “pedaladas fiscais”, de uso histórico na nossa administração pública. Tudo isso pode colaborar, mas as razões de fundo, da tentativa de golpe ao modo paraguaio, e da agressividade dos setores radicais da direita são bem mais complexos. Dizem respeito à própria maturidade democrática, que vamos processualmente conquistando.
A maturidade a que me refiro está lastreada, hoje, tanto nos partidos políticos que estão sobrevivendo ao mais formidável processo de destruição da esfera da política, ocorrida na história do país (como sujeitos que podem e devem ser recuperados numa reforma política), como nas próprias instituições da Constituição de 88. O funcionamento dos poderes da República e o grau de distanciamento formal, que as nossas Forças Armadas estão mantendo dos partidos políticos, em geral, de uma parte, e do extremismo de direita, de outra,conforta esta maturidade democrática. A destruição da política e dos partidos, porém, permanece uma necessidade da dominação oligopólica da mídia, para que ela continue tutelando a formação da opinião, de fora do espaço dos partidos que ela, ao fim e ao cabo, visa orientar.
A formação da soberania popular -isso vem da Revolução Francesa, segundo Habermas- permite distinguir entre o “poder engendrado comunicativamente” que forma a opinião e o “poder aplicado administrativamente” pelas autoridades constituidas, num contraste instável -agrego eu- no qual a soberania popular, tanto pode sair vencendo como pode ser dissolvida pelo domínio do discurso do interesse privado, transformado artificialmente em interesse geral. Não é esse o discurso do “ajuste”, que a mídia vem fazendo transitar, como uma verdadeira lavagem cerebral na opinião pública?
O Ministro da Defesa do Brasil é um integrante da cúpula do PCdoB e não está lá para implementar uma revolução nem para “aparelhar” as Forças Armadas, para uma posição política determinada. As Forças Armadas do país portam-se como Forças Armadas de qualquer país de democracia política consolidada, cujo parâmetro é a Constituição da República, o profissionalismo e a defesa da Soberania Nacional. Estes fatos históricos não são menores, para avaliarmos o desespero de certos setores da direita radical, hoje alinhados com a oposição, que sempre viu em Eduardo Cunha um que “nos representa”. A direita constatou que as nossas Forças Armadas não estão disponíveis para aventuras golpistas -um certo tipo de “chavismo” neoliberal em termos econômicos- ou para afrontar o poder constituinte do povo. Daí esta tentativa de golpe, fora do esquema militar e a sua agressividade desbocada, que pretende deteriorar o ambiente político democrático do país.
O livro “Alma em Fogo”, do dirigente do PCdoB Aldo Arantes, que documenta o testemunho e a ação deste grande quadro da esquerda brasileira (que participou dos mais importantes acontecimentos políticos nacionais da segunda metade do século XX), lembra um episódio importante das “preliminares”, que criaram as bases da vitória do Presidente Lula, em 2002. Como decorrência da ampla frente política, já conseguida em 1998, eu e Aldo Arantes secretariamos e organizamos -cumprindo mandato dos nossos respectivos partidos- a continuidade orgânica do que fora uma coalizão eleitoral, com o “Manifesto Em Defesa do Brasil da Democracia e do Trabalho”. Sua redação teve a participação do PT, PCdoB, PCB, PSB e PDT e personalidades da sociedade civil, de todas as extrações sociais. Recentemente o Fórum 21 promoveu uma sequência de debates e publicou um documento, com o mesmo nome, retomando e aprofundando muitas das questões levantadas naquele documento do ano 2000, desafiando a que façamos uma reflexão mais complexa sobre o futuro.
No início de 2000 este Manifesto é lançado e dá forma ao “Movimento Em Defesa do Brasil, da Democracia e do Trabalho”, em cuja “mesa executiva” estávamos eu e Aldo, acompanhados dos principais dirigentes dos partidos da esquerda brasileira de então. O nome de Aldo fora sugerido por Brizola, então vice de Lula na chapa de 98, e o meu nome fora indicado por Lula.Na linha de frente da foto, que está na página 321, do livro “Alma em Fogo”, estão Zuleide Faria (PCB), João Amazonas (PCdoB), Aldo Arantes (PC do B), Tarso Genro (PT), Herman Baeta (representando a “sociedade civil”, presidente do Conselho Federal da OAB), Lula (PT) e Miguel Arraes (PSB) e na segunda fila, da referida foto, está um conjunto de líderes sindicais e intelectuais, signatários do Manifesto.
O pragmatismo da governabilidade -necessário dentro das circunstâncias históricas que vivíamos em 2002 com a eleição do Presidente Lula- veio paulatinamente transformando as forças de esquerda, que chegaram ao Governo, em reféns das formas políticas mais tradicionais, que se alastraram como modo de governar em todo o aparato estatal. Nele, maiorias e minorias se formaram da mesma forma que nos governos anteriores, comprometimento que abalou o republicanismo do projeto da esquerda, embora envolvesse na ilegalidade (ou nas margens da legalidade) poucos membros do PT, comparativamente às demais forças políticas. Como força de esquerda majoritária no Governo, porém, o dano sofrido pelo petismo, não foi pequeno.
Neste momento em que o pessimismo, de certa forma justificado, se abate sobre uma parte do campo popular, como se o nosso ciclo democrático estivesse em estado terminal, é bom lembrar dois elementos políticos importantes: primeiro, a tentativa de ruptura do projeto democrático, hoje, no país, não vem do estamento militar, mas do próprio mundo civil, através de lideranças políticas (portanto pode e deve ser combatido no plano da política e não nas “vias de fato”); segundo, independentemente de que esta seja uma posição permanente, o fato é que, no meio da crise, as corporações armadas estão apostando no futuro democrático do país, de onde recolherão a afirmação do seu próprio prestígio e não em aventuras golpistas “revolucionárias”, seja de natureza nacional-autoritária, seja numa visão de alinhamento imperial.
Iniciativas de várias origens, no campo da esquerda e no campo democrático e progressista, têm proposto um novo alinhamento das forças de esquerda e democráticas do país, para retirar a nação do impasse que ela se encontra: de um lado, a necessidade de não permitir a interrupção do mandato legítimo da Presidenta de Dilma e, de outro, a urgência de estruturar um programa de esquerda, com base na defesa da soberania nacional e no combate às desigualdades sociais, de modo a não permitir a submissão aos ajustes neoliberais, que só vão aprofundar a crise e aumentar o fosso social entre ricos e pobres do país. O que está em jogo não é se vamos trilhar um caminho socialista democrático ou capitalista, mas se vamos implementar um projeto de nação com soberania, seja ele de que natureza for. O que está em jogo é se vamos ficar amarrados na lógica do rentismo financeiro, que vem sufocando a soberania popular, tanto na ação política e administrativa da autoridade constituida como na formação da opinião, controlada pela mídia oligopolizada.
Diversos manifestos estão sendo lançados no país, não só em defesa do mandato da Presidenta, ameaçado pela liderança e o fascínio que Eduardo Cunha exercia, até há poucas semanas, sobre a oposição neoliberal, mas também em defesa de um novo projeto de desenvolvimento econômico e social, cujo sentido estratégico teria três dimensões: uma dimensão política imediata, para reorganizar o sistema político no país, qualificar a vida dos partidos e o sistema eleitoral; uma dimensão econômica, a partir da perspectiva de que não há solução para crise fora do crescimento e da geração-distribuição de renda; uma dimensão “social”, no sentido de que soberania e justiça social compõem a mesma totalidade, ou seja, a partir da constatação que um país desigual é um país dividido, cuja soberania será apenas retórica, porque não gera no seu povo o sentido de pertencimento à nação.
Estes manifestos, originários de quadros políticos, movimentos sociais e sindicais, intelectuais, cientistas, acadêmicos de todas as origens, lideranças da sociedade civil -de baixo para cima e de cima para baixo- apontam para uma retomada daquele movimento do ano 2000. E o fazem, agora, já num novo patamar, dadas as mudanças que o país sofreu no último decênio, que tanto fizeram emergir novos problemas, como melhoraram a vida de pelo menos um terço da nossa população. É um novo momento do Estado Social de Direito, no qual, ou ele avança para novos níveis de redução das desigualdades ou retrocede para a sociedade dos três terços, que estava sendo encaminhada antes dos Governos Lula: 1\3 excluído e caso de polícia, 1\3 no limite da sobrevivência; e 1\3 de incluídos plenamente no consumo e no andar superior do “apartheid” social.
A partir das eleições municipais do próximo ano já teremos uma nova configuração nas forças políticas do país, que serão reorganizadas, tanto forçados pelos ensaios golpistas da direita, como pelo envolvimento de todas as forças políticas com vocação majoritária, nos episódios da Petrobrás. É o ano em que será feita uma filtragem -na esquerda e no campo democrático progressista- por cujos condutos pelos quais passarão as forças, tanto renovadoras como as conservadoras, mas que certamente estarão separadas em direção a 2018. Talvez esta eleição seja definidora dos caminhos do país, nos próximos quinze ou vinte anos, num mundo cada vez mais conturbado pelo “rentismo”, pelas guerras, pelas migrações forçadas pela fome e pela violência imperial.
As eleições municipais em Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, dentre outras -não os seus resultados quantitativos exclusivamente, mas como se apresentarão as forças de esquerda e democráticas que defendem a soberania nacional e a justiça social- serão extremamente importantes para o desenho deste futuro. Para ele, insista-se, nosso país só terá suas chances sempre com mais democracia, sem atalhos conspirativos e sem golpismos paraguaios.
(Artigo inicialmente publicado no site “Brasil 247”, no dia 28 de dezembro de 2015)
Tarso Genro é ex-governador do Rio Grande do Sul