Constantemente propagandeada pelo presidente Jair Bolsonaro como a cura para a Covid-19, a cloroquina e seu uso político vão causar nele efeitos colaterais que podem ir de dores de cabeça ao agravamento de sua decadência. Na mesma semana em que o uso da substância foi suspenso pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo FDA, a agência norte-americana que regula os medicamentos, o Ministério Público do Tribunal de Contas da União (MPTCU) pediu ao TCU investigação por possível superfaturamento na produção do fármaco pelo Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEX).
O pedido foi feito pelo subprocurador-geral do Tribunal de Contas da União, Lucas Rocha Furtado. Ele também solicitou que o TCU apure a “responsabilidade direta do presidente” na “orientação e determinação para o incremento dessa produção, sem que haja comprovação médica ou científica de que o medicamento seja útil para o tratamento da Covid-19″.
O TCU deve abrir nesta semana o inquérito, sobre duas linhas de apuração: suspeita de superfaturamento na compra da matéria-prima para o medicamento e aumento gigantesco da produção em comparação com anos anteriores.
No documento, o procurador menciona reportagens que indicaram que durante um ano o preço pago pelo Comando do Exército pela matéria prima aumentou seis vezes. Ele também diz que entre março e abril deste ano o Exército aumentou 84 vezes o volume de produção de medicamentos.
O inquérito vai apurar também de quem partiu a ordem para o Laboratório do Exército produzir a cloroquina em larga escala. A suspeita é de que a decisão tenha partido de Bolsonaro e da cúpula militar do governo, sem o aval do Ministério da Saúde, então comandado por Luiz Henrique Mandetta, contrário a ampliar o uso do produto no SUS.
O laboratório do Exército firmou ao menos 18 acordos para compra de cloroquina em pó e outros insumos de fabricação, como papel alumínio e material de impressão, ao custo total de R$ 1.587.549,81. Cerca de 95% dos gastos foram para a compra de 1.414 quilos de cloroquina em pó, segundo a ‘Agência Repórter Brasil’. As compras, sem licitação, fazem parte das ações de enfrentamento à pandemia. Os recursos vieram do Tesouro Nacional e foram repassados ao laboratório pelo Ministério da Defesa.
Furtado, que é o membro do Ministério Público com mais anos de atuação no TCU, ponderou: “Embora o possível aumento do custo dos insumos, do transporte e do dólar possa ter influenciado o aumento do preço, ainda assim adquirir o produto por um valor seis vezes maior numa compra sem licitação, a meu ver, representa um forte indício de eventual superfaturamento, situação que merece ser devidamente apurada pelo controle externo da administração pública”.
O subprocurador-geral afirmou haver “evidente ineficácia administrativa” que resultou “num desperdício de recursos públicos que deve ser devidamente apurado e os responsáveis penalizados na forma da lei, especialmente se há suspeitas de superfaturamento na aquisição de insumos”.
Ao citar Bolsonaro, Furtado diz que é preciso apurar a responsabilidade dele. “É sabido que a defesa da cloroquina é encampada diretamente pelo presidente da República, sendo razoável compreender que o contexto de que trata a presente representação – produção massiva de produto que, ao final, não será útil para os propósitos que motivaram esse ato – é resultado direto do voluntarismo da autoridade máxima do país, sem base científica ou médica. Ao agir dessa forma, o presidente da República deixa de garantir de forma adequada o direito da sociedade à saúde”, disse o subprocurador-geral.
Bolsonaro se espelhou em Trump e foi abandonado
Bolsonaro nunca escondeu sua admiração pelos Estados Unidos e sua devoção por Donald Trump. Desde que assumiu o Planalto, manteve-se fiel ao relacionamento, e não foi diferente no uso político da cloroquina e seus derivados. Até Trump deixá-lo “na mão”, abandonando a administração da substância a pacientes de Covid-19 nos Estados Unidos.
A história começou em 19 de março, quando Trump iniciou a campanha pelo uso da substância. A fala dele causou uma corrida às farmácias e desabastecimento no mundo todo, prejudicando milhares de pessoas que necessitam do medicamento para usos corroborados cientificamente. A onda chegou ao Brasil, obrigando a Anvisa a restringir a venda de cloroquina já em 20 de março, para deter a compra descontrolada.
Em 20 de março, quando ainda frequentava reuniões ao lado do então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, Bolsonaro ouviu o empresário Abílio Diniz perguntar sobre a substância propalada por Trump. No dia seguinte, um sábado, começou a campanha do presidente brasileiro pelas redes sociais.
Bolsonaro disse em vídeo que o hospital Albert Einstein tinha dado início a pesquisas sobre o uso de cloroquina e da hidroxicloroquina. Também afirmou que, em parceria com o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, usaria o laboratório do Exército para ampliar a produção das substâncias. Naquele dia, o Brasil registrava 1.128 casos confirmados de novo coronavírus e 18 mortes.
Nos 30 dias seguintes, o presidente mencionou a hidroxicloroquina e a cloroquina 30 vezes. O auge do interesse foi entre 27 de março e 9 de abril, quando ele postou sobre o remédio em 22 ocasiões. A partir dali, houve apenas três tuítes sobre a cloroquina até 19 de abril.
O remédio tornou-se o pivô da queda de dois ministros da Saúde em meio à pandemia, que não aceitaram ampliar o seu uso para pacientes com quadros leves da Covid-19 —Luiz Henrique Mandetta, em abril, e Nelson Teich, em maio.
“Remédio do Bolsonaro”
Quando o presidente propagandeou a cloroquina com mais ênfase, seus seguidores começaram a chamar o composto de “remédio do Bolsonaro” nas redes sociais. À medida que ele perdeu o interesse no assunto, a curiosidade da população também caiu. O pico da popularidade do termo nesse período foi registrado em 17 de abril, um dia após a queda de Mandetta.
Trump manteve o entusiasmo pelo medicamento até meados de maio, quando afirmou que estava tomando doses para evitar a doença. “Tenho tomado desde a última semana e meia. Uma pílula por dia”, afirmou a repórteres. Mas no fim de maio, os Estados Unidos anunciaram o envio ao Brasil de dois milhões de doses de hidroxicloroquina, num prenúncio de que iria abandonar a narrativa.
O anúncio ocorreu poucos dias depois de a OMS (Organização Mundial de Saúde) suspender os testes da substância para pacientes com coronavírus por causa dos riscos e da falta de segurança sobre a eficácia do remédio.
Nada disso fez o governo brasileiro voltar atrás. No mesmo dia em que os Estados Unidos retiraram a autorização de emergência de tratamento com as substâncias, o Ministério da Saúde estendeu a recomendação de uso delas para gestantes e crianças.
Débora Melecchi, coordenadora da Comissão Intersetorial de Ciência, Tecnologia e Assistência Farmacêutica do Conselho Nacional de Saúde, avalia que é desperdício de recurso público fabricar a cloroquina para a doença, tendo em vista a falta de recursos para o Ministério da Saúde, agravado pelo teto de gastos, que retirou R$ 20 bilhões da pasta desde 2016.
“O recurso público tem que estar voltado aos laboratórios públicos para produzirmos realmente o que é necessário para a população, como EPIs para os trabalhadores de saúde, que estão ficando doentes e sendo afastados do trabalho, ou morrendo em alguns casos”, defende a médica.
Enquanto isso, as pessoas que sofrem de enfermidades para as quais a cloroquina e a hidroxicloroquina têm eficácia comprovada – artrite, lúpus, doenças fotossensíveis e malária – continuam com dificuldade de comprar as drogas, que sofreram um pico de demanda depois de tanto marketing governamental.
A situação piorou após a saída de Teich do governo e a sua substituição pelo general Eduardo Pazuello, “oficializado” como interino por Bolsonaro. A partir daí, o Ministério da Saúde ampliou o uso da cloroquina para pacientes com quadro leve de Covid-19. “A cloroquina permanece em falta para quem realmente precisa”, lamenta a coordenadora.