Thaís Reis Oliveira
Carta Capital
Aprovado à revelia do governo Bolsonaro, o auxílio emergencial de 600 reais está perto do fim — os primeiros beneficiários receberão a última parcela já no fim de agosto. Sob pressão do Congresso para oferecer uma alternativa à proposta, o governo federal corre para tirar do papel um novo programa de transferência de renda.
O chamado Renda Brasil nasce para substituir o Bolsa Família. A proposta, segundo o ministro Paulo Guedes, é unificar os benefícios sociais. O valor do benefício pode ficar entre 250 e 300 reais ao mês, e ampliar o contingente atendido pelo programa do PT. Para financiar o programa, o governo tentou, sem sucesso, abocanhar recursos do Fundeb. Também estão na mira benefícios sociais como o abono salarial e o salário-família.
Para a oposição, trata-se de uma tentativa de apagar as digitais petistas do projeto e levar adiante a agenda ultraliberal do economista. “Vão, na verdade, reajustar o Bolsa Família. Mas estão chamando por outro nome. É a velha agenda, com um apelido novo, para reduzir gastos sociais e extinguir direitos”, critica a economista Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome [2011-2016], e uma das criadoras do Bolsa Família.
Diante dessa investida, o partido contra-ataca. Será apresentando ao Congresso nos próximos dias um plano de ampliação do Bolsa Família, que passaria a atender todas as famílias com renda por pessoa de até 600 reais. A proposta é ambiciosa: garantir que nenhum brasileiro viva com menos de 300 reais por mês. Famílias com filhos pequenos receberiam um valor adicional.
Atualmente, o Bolsa Família atende 14 milhões de famílias. Opera em duas faixas: a extrema-pobreza, de até 89 reais per capita, e pobreza, de até 178 reais per capita. A ideia é que o Bolsa Família, já pronto, se transforme em um programa de uma renda básica, incorporando ao CadÚnico a base cadastral do auxílio emergencial. Em uma família de um casal e dois filhos, sem qualquer outra fonte de renda, o benefício poderia chegar a 1.200 reais por mês.
O programa custaria entre 106 e 198 bilhões de reais por ano – abatidos aí os 32 bilhões gastos hoje com o Bolsa Família. A variação depende do número de famílias beneficiadas que, por sua vez, depende de como será a retomada econômica.
Campello propõe que o projeto seja pago extra-teto, para evitar que ela canibalize outras despesas sociais essenciais. Em paralelo, foi apresentado um projeto de reforma tributária que onere os muito ricos, hoje 0,3% da população. “Nossa estimativa de arrecadação anual chega a 290 bilhões ”
Confira entrevista a seguir:
Muita gente deve estar pensando porque o PT não ampliou o Bolsa Família antes. Por quê?
Teresa Campello – Aquele Bolsa Família foi desenhado para um outro país. No auge do Brasil Sem Miséria [programa lançado em 2011], tivemos a menor taxa de desemprego da história do Brasil, de 4,9%. O mercado buscava trabalhadores e nosso esforço, naquela época, era para qualificá-los. O Bolsa Família era um complemento ao salário. Hoje, o Bolsa Família tem duas linhas: a de extrema pobreza e de pobreza. A linha de extrema pobreza hoje está estabelecida em 89 reais per capita. Passaríamos para 300 reais. A segunda linha, hoje em 178 reais per capita, passaria para 600.
É bem acima do que seria considerado pobre por qualquer indicador, mesmo o do Banco Mundial.
Teresa Campello – Mas são famílias em vulnerabilidade. Que não eram pobres até pouco tempo, mas perderam emprego ou renda e acabaram caindo nessa situação. Com a pandemia, uma parcela enorme da população foi tolhida de qualquer possibilidade de trabalhar, mesmo querendo. E uma parte dos trabalhadores foi dispensado sem renda nenhuma. Há cerca de 45 milhões de adultos no Brasil sem renda. A ideia é que o programa chegue até eles.
A renda básica universal é uma discussão no mundo todo. Mas não é fato. Sinceramente, se qualquer outro país tivesse o Bolsa Família, jogaria fora? A rede [de assistência social] está montada
O Renda Brasil, novo projeto do governo, não atende essa parcela?
Teresa Campello – O que o governo está apresentando é um embuste. Estão dizendo que vão juntar o dinheiro do Bolsa Família mais o dinheiro do abono salarial. Dá em torno de 50 bilhões de reais. Daria uma renda média de 230 reais por família. Isso equivale ao reajuste do Bolsa Família no final do Brasil Sem Miséria. Vão, na verdade, reajustar o Bolsa Família. Mas estão chamando por outro nome. É a terceira vez que anunciam a extinção do Bolsa Família, a terceira vez que tentam acabar com o abono salarial, a terceira vez que tentam emplacar a carteira verde-e-amarela. É a velha agenda, com um apelido novo, para reduzir gastos sociais e extinguir direitos.
E suplantar o programa do PT.
Teresa Campello – O objetivo é tirar as digitais do PT e de Lula. Por si só já é um escândalo. Mas ninguém trata assim, porque vem do Paulo Guedes.
Além do Renda Brasil, há um movimento amplo pela aprovação de uma renda básica de cidadania. No que o Mais Bolsa Família é diferente?
Teresa Campello – Vamos pegar nosso exemplo, o melhor, o mais eficaz, e jogar no lixo? No meio da crise? Do ponto de vista de política pública é o pior a se fazer. Hoje, o mais seguro a é fortalecer aquilo que já existe. A renda básica universal é uma discussão no mundo todo. Mas não é fato. Sinceramente, se qualquer outro país tivesse o Bolsa Família, jogaria fora? A rede [de assistência social] está montada. E a população não é só vulnerável de renda. Muitas dessas crianças estão fora da escola, sem merenda, trancadas num cômodo com 7 ou 8 adultos. Houve um crescimento da violência doméstica. Com a cobertura dessa rede, a gente vai poder captar outras desproteções.
Temos que aprender algo com esse sofrimento todo. Um, o teto de gastos não funciona. E dois, o processo de reconstrução tem que ser financiado pelos ricos
Com a uberização, robotização, a universalização da renda básica parece inevitável. O Mais Bolsa Família é um passo adiante?
Teresa Campello – Nossa proposta é mais que um passo rumo à renda básica, é um lance inteiro de escadas. É bom pensar num desenho universal de renda básica? Eu acho bacana. Mas, hoje, é justo pegar o dinheiro do Brasil e dividir igual entre a filha do dono da Havan, o miserável, aquele que perdeu o emprego, a mãe de família que está cuidando de três meninos? Acho que temos que avançar numa perspectiva segura, concreta. E essa perspectiva é de ampliação do Bolsa Família.
Qual a sua aposta para o futuro pós-pandemia?
Teresa Campello – Temos que aprender algo com esse sofrimento todo. Um, o teto de gastos não funciona. E dois, o processo de reconstrução tem que ser financiado pelos ricos. Isso não é uma discussão que o Brasil inventou. O período pós-guerra foi financiado com a fortuna dos mais ricos. Estou falando da Inglaterra, berço do liberalismo. Não é nenhuma utopia socialista. Se a tragédia é do tamanho de uma guerra, precisamos de um tratamento que dê conta.
E, no imediato, como pagar por ele?
Teresa Campello – Como todos os países estão fazendo. Com endividamento. A Alemanha tem conseguido pagar a população que tá sem emprego ou pagar aqueles que estão empregados. Na Inglaterra, estão pagando trabalhadores com carteira assinada porque as empresas que fecharam. O Estado, na Europa e em vários outros países, está dividindo esse custo. Só no Brasil acha-se que vai lidar com uma situação totalmente atípica com recursos que já empenhados para administrar o dia a dia. Essa conta não vai fechar. Nossa proposta é tributar os mais ricos. Taxar lucros e dividendos, taxar grandes fortunas. Nossa última estimativa chega a 290 bilhões de reais por ano. Mas antes de falar em reforma tributária, precisamos superar o teto de gastos. O novo Bolsa Família é um suporte para que a economia avance. Esses recursos vão irrigar o consumo, o comércio. E a reforma tributária solidária pavimenta o caminho para uma situação mais estrutural e permanente.
Publicado originalmente na Carta Capital