Um do debates importante na filosofia do direito contemporâneo refere-se à própria natureza do Estado de Direito. O que faz um Estado de Direito? Quais requisitos de legitimidade aqueles que exercem o poder devem satisfazer? Por um lado, há os que propõem uma leitura minimalista desses requisitos. Haveria Estado de Direito se as leis fossem públicas, prospectivas, gerais, formalmente promulgadas, estáveis etc. Mas há também, por outro lado, os que exigem uma fidelidade a valores substanciais.
O Estado de Direito pressupõe, para estes, um dever para todos – principalmente para quem aplica a lei – de submissão ao direito e de fidelidade, e confere poder e responsabilidade a todos para exigir que os demais obedeçam ao mesmo direito, inclusive com procedimentos para garantir que essas responsabilidades sejam exercidas por todos, e que todos possam ser cobrados por elas. Essa última interpretação é a mais correta. Ela exige não apenas que
todos cumpram a lei, mas que todos possam exigir que todos os outros, inclusive e principalmente quem detém o poder, que cumpram a lei e sejam responsabilizados pelo seu descumprimento.
Uma questão mal resolvida no Brasil é a questão da responsabilização do Poder Judiciário. Por que os juízes não respondem pelos seus atos como qualquer cidadão? Por que eles não são julgados, punidos, responsabilizados quando descumprem as suas funções institucionais? O que garante a eles impunidade e irresponsabilidade perante a comunidade, proibindo-os inclusive de perderem os seus cargos em caso de abusos de autoridade?
O caso do juiz Sérgio Moro nos ajuda a entender a carência de respostas para essas questões. De um ponto de vista moral, quem está em julgamento no Brasil é Moro, e não Lula. Lula nunca foi julgado com base nos princípios que definem o Estado de Direito. Ele nunca teve oportunidade de responder – e ser ouvido – às fraquíssimas acusações que pesam contra ele segundo o denominado “devido processo legal”. Os inimigos de Lula nunca acreditaram que estavam tendo justiça, pois se satisfaziam com a vingança. Era isso que eles queriam, e se para isso tivessem que pagar o preço de termos (todos nós, amigos ou inimigos de Lula) um Poder Judiciário politizado e instrumentalizado, eles estavam dispostos a pagá-lo. Desde o primeiro ato de condução forçada, com sirenes, helicópteros, câmaras, comentaristas da Globo News, trânsito fechado, 20 minutos de notícia no Jornal Nacional e toda aquela encenação, já sabíamos que Lula nunca teria diante de si um juiz, mas um inimigo político que jamais poderia dar-se por vencido, que lutaria com todas as suas forças para não sofrer uma derrota pessoal, para não admitir responsabilidade por seus excessos.
A máscara desse inimigo político caiu faz tempo. A contribuição mais marcante da Justiça Federal para a execução e a consolidação do Golpe de 2016 foi a decisão, pelo Juiz Federal Sérgio Moro, no âmbito da “operação Lava-Jato”, de tornar públicas gravações de conversas telefônicas entre Lula e várias pessoas, entre elas então Presidenta da República Dilma Rousseff. Foram interceptadas, ainda, conversas telefônicas dos advogados de Lula, incluindo-se diversas ligações com partes que não tinham nenhuma relação com as investigações, encontrando-se protegidas pelo sigilo profissional.
A maioria dessas gravações foi ilegal, por razões diferentes, e o próprio magistrado que prolatou a decisão posteriormente reconhece a ilegalidade dessas decisões. No que concerne às gravações da Presidenta Dilma Rousseff, o tema adquiriu dimensões políticas inimagináveis, na medida em que a Presidenta estava sob julgamento político na Câmara dos Deputados, que analisava as acusações de prática de crime de responsabilidade, com vistas a autorizar a instauração de impeachment pelo Senado Federal e o afastamento da Chefe do Poder Executivo.
Ilegalidade evidente e primária
A ilegalidade da interceptação das conversas da Presidenta da República era evidente, primária, na medida em que diante da prerrogativa de função apenas o Supremo Tribunal Federal tinha competência para autorizar qualquer interceptação telefônica envolvendo ligações da Presidenta da República. Como explica Eugênio Aragão, então Ministro da Justiça, em entrevista à Folha de São Paulo, “se houve alguma conversa da senhora presidente que merecesse atenção jurisdicional, não caberia ao juiz de primeira instância nem sequer aquilatar o valor daquela prova e muito menos dar-lhe publicidade”.
Segundo o Ministro, “como se trata de eventual prova obtida em encontro fortuito, sua excelência o meritíssimo juiz deveria ter fechado os autos e encaminhado ao Supremo Tribunal Federal e não o fez”.
A divulgação do áudio não se tratava, portanto, de mero equívoco da natureza técnica. Pela própria fundamentação da decisão, pode-se depreender o propósito político de gerar uma reação contra a Presidenta da República e interferir em seu desfavor, diante da opinião pública e dos demais agentes públicos responsáveis, no âmbito do Poder Legislativo, pelo julgamento da Presidenta. De acordo com Sérgio Moro, “o levantamento propiciará assim não só o exercício da ampla defesa pelos investigados, mas também o saudável escrutínio público sobre a atuação da administração pública e da própria Justiça criminal. A democracia em uma sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os governantes, mesmo quando estes buscam agir protegidos pelas sombras”.
Como se nota, contrariamente ao texto expresso do artigo 10 da Lei n. 9.296/1996, que considera crime punível com pena de reclusão a “quebra de segredo de Justiça”, o Magistrado intencionalmente divulgou a gravação para a imprensa com o objetivo de incitar a população contra a Presidenta da República, interferindo na opinião pública com o fito de criar condições políticas favoráveis ao processo de impeachment.
Agora, às vésperas de Lula completar 100 dias de prisão, vivemos mais um episódio deprimente. Diante da violação aos seus direitos políticos, na medida em que a juíza daExecução Penal impedia que Lula concedesse entrevistas, recebesse pessoas, gravasse mensagens etc., foi impetrado um Habeas Corpus no plantão e deferida uma medida liminar para libertá-lo. Essa decisão mostrou ao Brasil que a justiça tem lado, que o juiz Sérgio Moro não se comporta como juiz, mas como parte. A um só tempo, ele sai de férias e – despachando do exterior – dá uma ordem fora dos autos a um Delegado de Polícia para
descumprir uma decisão de seu próprio tribunal. Em seguida, dá um telefonema a um juiz que estava de pijama, fora do exercício da jurisdição, para que esse este cassasse uma decisão de igual hierarquia sem qualquer recurso impetrado.
E, finalmente, consegue que o Presidente do seu tribunal interfira para impedir o cumprimento da ordem do único juiz que
tinha competência para decidir o pedido de Habeas Corpus durante o fim-de-semana. Não é necessário empregarmos um raciocínio próprio para tipificar essas condutas. Basta nos referirmos às palavras do Ministro Gilson Dipp, corregedor do STJ, que corretamente observou a inadequação da conduta de Moro: “Ele se manifestou em um momento inapropriado. Porque no caso da liminar ele seria ouvido. Pela lei, tanto a autoridade coatora quanto o MPF são ouvidos em um prazo de cinco dias. Ele, no entanto, atravessou um despacho questionando a competência de um superior hierárquico seu. Afirmou falta de competência, afirmou que falou com o presidente do tribunal, afirmou que teria que ouvir o relator. Nada disso poderia ter sido feito”.
Do mesmo modo, o Desembargador Gebran Neto, que indevidamente interferiu no processo para dar uma ordem contraditória, cometeu o mesmo tipo de ilegalidade: “Quem tinha jurisdição naquele momento era o desembargador plantonista. Ele [Gebran Neto] num domingo, tendo alguém representando o tribunal- e quem representava era o Favreto – convoca para si o processo e manda suspender o alvará de soltura do Lula. Juiz de igual hierarquia. Ambos desembargadores do TRF4. Um determina o contrário do outro. Isso não poderia haver. Decisão judicial ruim, errada ou teratológica se reforma segundo a lei e a Constituição pelos recursos cabíveis e pela autoridade hierarquicamente cabível”.
Finalmente, Thompson Flores, Presidente do Tribunal, entra em cena cometendo o mesmo tipo de insubordinação à lei: “ meu ver, apesar de ter resolvido a questão que deixou todo mundo em polvorosa, a competência para dirimir matéria jurisdicional em conflito não é do presidente do tribunal. Presidente do tribunal administra, assina orçamento, presidente sessões, decide suspensão em segurança – o que diz respeito à ordem pública, economia, saúde pública, o que não era o caso, já que aqui é matéria penal. Então, ele suprimiu também ou o plenário do TRF ou a competência do STJ. Foram erros e irregularidades seguidos”.
O que esses três episódios – a condução coercitiva, a divulgação das gravações clandestinas e o descumprimento da ordem judicial de soltura – têm em comum é o profundo desprezo pela Ordem Jurídica. É a combinação da ideia de que “a lei vale para prender Lula, mas não para soltá-lo” com a sensação de que o Judiciário não precisa se submeter ao Estado de Direito. É a noção de que a disputa pela prisão ou liberdade de Lula não será resolvida nem com argumentos jurídicos e nem pelos procedimentos previstos na legislação. Enquanto os procedimentos levarem a decisões que mantenham Lula preso, ou
quem sabe, que o matem, eles serão respeitados. Mas qualquer procedimento que resulte em decisões capazes de torná-lo politicamente ativo e capaz de comandar as massas que clamam por sua liberdade será sumariamente desconsiderado.
Voltamos aqui ao início de nossa argumentação: não há Estado de Direito quando os juízes se comportam como vingadores, quando não internalizam um dever de fidelidade à lei e não têm que prestar contas à sociedade quando descumprem suas obrigações. Em suma, quando há sempre um atalho para o arbítrio não se pode mais falar em Direito, em liberdade ou em democracia. O Supremo Tribunal Federal tem diante de si um grande desafio: reconhecer a farsa judicial que foi o julgamento de Lula e a vergonhosa parcialidade de todas essas ações de Moro e da imensa maioria do TRF-4.
Mas, para isso, vai ter que cortar na sua própria carne. Quem está sob julgamento da sociedade e da história é a justiça brasileira. Muitos de nós, amigos ou adversários de Lula, estamos buscando justiça, ao invés de vingança. E sabemos que não é o simples fato de ocupar um cargo de autoridade, receber a bolada que os juízes ganham no Brasil e botar uma toga preta que faz de alguém um juiz. É preciso coragem para se submeter à lei quando ela se volta contra os interesses dos poderosos. É preciso e urgente que o judiciário, principalmente o Supremo, abandone o canto da sereia da política e os holofotes da imprensa manipuladora, pois chegamos no ponto em que a covardia e a inércia inevitavelmente levarão à ditadura. O que vimos no TRF-4, na última semana, foi um fenômeno preocupante: um tribunal inteiro contaminado pelo ódio e pela insubordinação de Sérgio Moro; um tribunal de exceção, onde não é preciso de processos ou julgamentos para se obter uma condenação.
Por Thomas Bustamante, professor de Filosofia do Direito da Universidade Federal de Minas Gerais