Partido dos Trabalhadores

Tiros, estupros e chacinas: intervenção federal no RJ completa um ano

Dados do Observatório da Intervenção indicam descumprimento da promessa de melhorar os índices de segurança no estado

Mario Tama/Getty Images

Intervenção no Rio é autoritária e eleitoreira

O decreto de intervenção federal no Rio de Janeiro, por meio do artigo 34 da Constituição Federal de 1988, foi assinado pelo então presidente Michel Temer (MDB) com a promessa de reduzir os índices de violência no estado. Walter Souza Braga Netto, general do Exército e comandante do Comando Militar do Leste, foi nomeado interventor, assumindo o comando da Polícia Militar, da Polícia Civil e do Corpo de Bombeiros, além de responder diretamente ao Presidente da República. Um ano depois, os números indicam que a iniciativa foi desastrosa.

Mais insegurança, mais tiroteios. O Brasil de Fato acompanhou de perto as consequências da intervenção federal no cotidiano dos cariocas e constatou que a vida não é a mesma após o decreto de Temer. Lançado na última quinta-feira (14), o Observatório da Intervenção apontou que o Estado investiu R$ 1,2 bilhão em 2018, mas o número de mortes violentas teve uma redução apenas de 1,7% em relação ao ano anterior. O índice de resolução dos crimes de homicídio no estado se mantém em torno de 10%.

Impunidade

A execução da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes à luz do dia, em 14 de março de 2018, tornou-se um símbolo da impunidade e da ineficácia do Estado para identificar e responsabilizar assassinos. Onze meses depois, não se sabe quem matou e quem mandou matá-los, nem a motivação para o assassinato – embora seja evidente a relação com a atuação política da vereadora no Complexo do Maré.

Em novembro do ano passado, os investigadores informaram que agentes do Estado estariam agindo para interferir negativamente no andamento das investigações. O deputado federal Marcelo Freixo (PSOL) manifestou sua indignação esta semana, pelas redes sociais, contra a falta de esclarecimentos sobre o caso: “Não vamos sossegar enquanto este crime não for esclarecido. Foi um crime contra a democracia e que mundo inteiro se levantou contra. Mas, para nós, sempre vai ser mais do que isso. É um amor tirado de nós. Carregamos esta cicatriz, mas a justiça alivia e nos faz crer que esta dor não precisamos sentir mais”.

Fichados e revistados

O fichamento obrigatório de moradores e as revistas ilegais realizadas da Vila Kennedy, da Vila Aliança e da Coreia, na zona oeste do Rio, por oficiais do Exército, foram alguns dos primeiros impactos da intervenção no dia a dia dos moradores das periferias fluminenses. Em 1º de março, Guilherme Pontes, pesquisador da área de segurança pública e violência institucional da Justiça Global, já alertava para as violações aos direitos humanos que estavam por vir: “Isso é a mais pura expressão dos processos de criminalização da pobreza e racismo em que se baseia essa política de segurança pública. Moradores de favela, que são em sua maioria negros, estão tendo presunção de inocência e o direito à imagem violado e exposto dessa forma”.

Práticas dessa natureza se reproduziram em outras comunidades do Rio de Janeiro, apesar dos protestos de Daniel Lozoya, do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro: “A constituição coloca que a pessoa que possui documento de identidade, legível, não pode ser obrigada a outras formas de fichamento com fins criminais. Tampouco o estado é autorizado a realizar banco de dados de forma obrigatória, ainda mais sem explicar a finalidade desse tipo de procedimento”.

Em visita ao Brasil, o argentino Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz em 1980, criticou publicamente a postura do governo Temer: “Esse governo é um governo neoliberal, e a única forma de se manter no poder é através da violência. Colocam outra vez os militares nas ruas para fazer o controle social. E isso não resolve o problema, pelo contrário, agrava. A única forma de superar a violência social é a educação, são as políticas sociais, é dar dignidade aos trabalhadores”, disse o ativista. Mas não foi ouvido.

Um militar revistando as mochilas de crianças, antes de entrarem na escola, tornou-se uma cena frequente logo no primeiro mês de intervenção. Para poder circular pela cidade, moradores das favelas tinham que ser fotografados, com a carteira de identidade em mãos. Para Filipe dos Anjos, secretário geral da Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (Farferj), esse conjunto sintetizava o olhar do governo Temer sobre a população pobre: “É uma intervenção política, de um governo impopular, inimigo do povo, que não passou pelas urnas. Um governo que está no poder sobre um golpe, que usa os militares porque setores da sociedade acreditam que a raiz da insegurança pública está nas favelas”.

Conforme os dias se passavam, ficou claro que a reviravolta no cotidiano das comunidades não foi revertida em melhora nos índices de segurança.

Números

O Observatório da Intervenção, projeto coordenado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Cândido Mendes, divulgou seu primeiro relatório dois meses após o decreto. O material indicava que, até 16 de abril de 2018, haviam sido registrados 1.502 tiroteios no Rio de Janeiro – um aumento de 15,6% em relação ao mesmo período do ano anterior. Os casos de chacina duplicaram: foram 12 durante a intervenção, resultando em 52 mortos, contra seis no mesmo período do ano anterior, que geraram 22 vítimas.

Quatro meses após a assinatura do decreto por Temer, o mesmo Observatório indicava 36% de crescimento no número de tiroteios.

No dia 20 de junho, no Complexo da Maré, zona norte do Rio de Janeiro, onde vivia Marielle, agentes a bordo de um helicóptero da Polícia Civil deixaram ao menos 160 marcas de tiros nas ruas da comunidade. Na mesma operação, o estudante Marcos Vinícius, de apenas 14 anos foi assassinado no caminho da escola.

A Comissão Popular da Verdade divulgou um levantamento parcial em 25 de julho, apontando aumento das taxas de letalidade, dos tiroteios e das chacinas no estado. O número de tiroteios havia crescido 60% nos meses de intervenção, somando 4005 registros em 2018, frente aos 2503 registros em 2017. O número de homicídios decorrentes de intervenção policial havia saltado 28%, em comparação com o mesmo período do ano anterior.

A falta de efetividade nas ações fez com que integrantes das próprias Forças Armadas começassem a questionar a intervenção. O panorama se agravou quando a Defensoria Pública do Rio de Janeiro divulgou no relatório parcial Circuito de Favelas por Direitos relatos de invasões das casas, agressões físicas e estupros, oito meses após a assinatura do decreto.

O pesquisadores da Ouvidoria visitaram 15 comunidades da cidade do Rio e mapearam 30 tipos diferentes de violação. “Eles entraram numa casa que era ocupada pelo tráfico. Lá tinham dois garotos e três meninas. As meninas eram namoradas de traficantes. Era pra todo mundo ser preso, mas o que aconteceu é que os policiais ficaram horas na casa, estupraram as três meninas e espancaram os garotos. Isso não pode estar certo”, relatou um morador em condição de anonimato.

Silvia Ramos, coordenadora do Observatório da Intervenção, em entrevista recente ao Brasil de Fato, sintetizou o fracasso: “Os problemas da segurança pública do Rio de Janeiro, que já existiam nos últimos anos, não foram alterados. Pelo contrário, alguns desses problemas se acentuaram, como a política de segurança baseada em tiroteios, operações, mortes decorrentes de ação policial, presença e expansão de controle de territórios por grupos armados ilegais, como a milícia, problemas de corrupção policial”, lamentou.

Repercussão internacional

Desde 8 de maio de 2018, o Estado brasileiro tem sido chamado a prestar esclarecimentos sobre as violações registradas durante a intervenção no Rio de Janeiro. Na primeira ocasião, a Organização dos Estados Americanos (OEA) solicitou explicações sobre abordagens realizadas nas comunidades periféricas e sobre a condução das investigações sobre o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes.

As audiências, realizadas em Santo Domingo, República Dominicana, foram solicitadas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA por 20 organizações sociais. Uma delas, contou com o depoimento da viúva de Marielle, Mônica Benício.

Em agosto, representantes do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) estiveram no Rio de Janeiro para acompanhar as investigações do caso Marielle e as denúncias decorrentes da intervenção federal no estado.

Onze meses após a execução de Marielle, a Anistia Internacional lançou o documento “O labirinto do caso Marielle Franco”, que aponta inconsistências e contradições nas investigações do caso.

O último relatório do Observatório da Intervenção está disponível neste link.

Por Brasil de Fato