A recriação do tributo sobre juros e dividendos para pessoas físicas é um dos passos fundamentais para tornar o pagamento de impostos socialmente mais justa no Brasil. A cobrança de 15% sobre os recursos atingiria principalmente os 71 mil brasileiros mais ricos.
Essa parcela da população representa 0,3% dos declarantes de imposto de renda, mas soma 22% de toda a riqueza do País. No entanto, paga apenas 6% de seus rendimentos em impostos, enquanto os 10% mais pobres gastam 32% de seus rendimentos em tributos.
Além disso, a mudança geraria recursos na ordem de R$ 50 bilhões por ano. O valor é suficiente para cobrir o déficit orçamentário ou para realizar reformas importantes nos impostos sem impactar as contas dos estados e municípios, como a unificação do PIS/Cofins.
Em entrevista à Agência PT de Notícias, o economista Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), Rodrigo Orair, apresenta dados de um estudo realizado com o também pesquisador do IPEA Sérgio Gobetti, que expõe as injustiças do sistema e aponta caminhos para a melhoria.
Confira a entrevista:
Qual a grande dificuldade para recriar a cobrança sobre lucros e dividendos a 15%, como ocorria antes de 1995?
De um lado, há uma resistência generalizada da sociedade ao imposto, há uma reação ao aumento da carga tributária. Por outro, acho que há uma falta de clareza de se explicar para a população as injustiças do nosso sistema tributário, as desigualdades que advém disso, o fato de ter esse tipo de benefício que privilegia o rico, o muito rico, em detrimento da classe média, da base. Falta as nossas lideranças políticas conseguirem ter uma agenda de progressividade que seja mais consequente e não uma medida ou outra.
É um modelo de tributação tipicamente brasileiro ou há outros países com esse tipo de isenção?
A gente fez um levantamento com 34 de países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que a OCDE reúne países de livre mercado e democracias representativas. Estamos falando de países como Alemanha, França, Coréia do Sul, não estamos falando de nada muito diferente disso. O único que adota isenção total de lucros e dividendos além do Brasil é a Estônia. Mais nenhum outro em toda a OCDE tem esse tipo de jabuticaba tributária.
Além dos lucros e dividendos tem também os juros sobre capital próprio. Vocês chegaram a calcular nesse trabalho qual o impacto financeiro da não-arrecadação?
Estima-se que seja da ordem de R$ 8 bilhões.
Se somarmos as estimativas, seriam R$ 58 bilhões em arrecadação?
Com essas duas “jabuticabas tributárias”, exatamente. A consequência dela é você subtributar o lucro. A carga tributária no Brasil é parecida com a dos países da OCDE. Isso porque nossa tributação sobre bens e serviços é maior do que a deles. Quando a gente compara a tributação sobre renda e patrimônio, a nossa é muito baixa, em particular sobre lucros e dividendos.
Na OCDE, em média, a tributação sobre lucros e dividendos é da ordem de 43%, de pessoas jurídicas e físicas. No Brasil, com as nossas jabuticabas tributárias, ou seja, lucros e dividendos mais os juros sobre capital próprio, cai abaixo de 30%. Isso é generalizado. Nos Estados Unidos, são 57,6%. Na Austrália e na Alemanha, 49%. Todo o mundo desenvolvido tributa muito mais o lucro do que a gente.
E quanto aos argumentos de que seria uma bitributação e afugentaria investimentos, são válidos?
Por que em todo o mundo desenvolvido, com exceção da Estônia, não se fala em bitributação? Esse era um quadro que prevalecia no Brasil até 1995. Por que não era considerado bitributação e passou a ser? Muitas vezes esses argumentos carecem de conteúdo, caem no formalismo. Fazem uma discussão jurídica que não se coloca em quase lugar nenhum do mundo.
A discussão maior é: isso afugenta investimentos? Não. O primeiro ponto é que se criou essas jabuticabas e não houve esse investimento todo. Os investimentos permaneceram estagnados no Brasil por praticamente uma década.
Qual o impacto para o crescimento?
Qualquer tipo de imposto tem efeitos perniciosos no crescimento, seja ele sobre bens e serviços, seja sobre patrimônio, seja sobre consumo, sobre renda, sobre lucros. Agora, alguns impostos têm efeitos mais perniciosos do que outros. Nesse sentido, tudo bem ter ajuste fiscal de curto prazo. Mas é importante apontar para uma agenda de médio prazo, em que a progressividade, ou seja, os recursos que eu consiga arrecadar mais dos mais ricos sejam usados para outro tipo de reforma tributária que simplifique outros tributos, que permita uniformização e redução de alíquotas.
O que a gente tem defendido é utilizar parte dos recursos do pagamento de lucros e dividendos não no primeiro ano, em que você tem que fazer o ajuste urgente, mas pelo menos nos próximos anos, para financiar uma reforma no PIS/Cofins. Esse é um tributo cumulativo, cheio de distorções, que poderia aumentar a competitividade da produção brasileira. Seria na verdade trocar, fazer com que os mais ricos contribuam mais no ajuste fiscal e que esses recursos no médio prazo sejam utilizados para financiar uma reforma em outros tributos, simplificar, reduzir tributação de bens e consumo.
Já existe um debate no Congresso Nacional sobre a reforma do PIS/Cofins e do ICMS, inclusive com previsão de criação de fundos para que os estados não sejam prejudicados e contem com reposição de recursos. O caminho seria simplificado com a tributação de lucros e dividendos em relação ao que o governo e o Congresso propõem?
No caso do PIS/Cofins, o grande problema é que a indústria foi para o regime não cumulativo, que é melhor, porque não incide o imposto várias vezes em cima da produção. Os serviços, não. A indústria paga no não cumulativo cerca de 9,25%. Os serviços, se fossem para a mesma alíquota que a indústria, oneraria mais. A alíquota neutra para os serviços é da ordem de 6%. Então você tem duas opções: ou conviver com os serviços com uma alíquota baixa e a indústria com uma alíquota alta, sem afetar a arrecadação, ou corrigir todo mundo para essa alíquota mais baixa dos serviços de 6%.
Para convergir e não ter impacto na carga tributária, o recurso tem que vir de outro lugar. Nossa proposta é o retorno dos lucros e dividendos. Fazer um ajuste fiscal inspirado no que o Obama fez em 2013 nos EUA. Ele procurou penalizar menos os mais pobres, aumentou a isenção do imposto de renda para eles mantendo os impostos inalterados para a classe média e adotou medidas que ampliaram a tributação sobre os mais ricos.
A isenção sobre lucros e dividendos serve para isso. Na verdade, é pensar que a agenda de progressividade pode ser um caminho para a simplificação tributária, para você convergir para menos alíquotas, menos complexidade e, portanto, evitar planejamento tributário, evitar burocratização, evitar contingenciosos judiciais, promover uma carga tributária que seja mais pró-crescimento e menos plena de distorções como é a nossa hoje.
Qual o efeito prático dessa mudança na vida da população mais pobre?
Focando que a isenção de lucros e dividendos hoje ela beneficia mais ou menos 2,1 milhões de pessoas, mas os principais beneficiários estão no topo da distribuição, são cerca de 50 mil pessoas que recebem mais de R$ 1,3 milhão por ano. O efeito direto dessa medida seria sobre o topo da distribuição, principalmente. Apesar de que alguns profissionais liberais sentiriam esse efeito. Na tributação de lucros e dividendos com as alíquotas progressivas do imposto de renda, a maior parte da base ficaria isenta.
No médio prazo, se isso for utilizado para financiar uma reforma que simplifique o PIS/Cofins e reduza suas alíquotas, vai sim beneficiar a todos, mas principalmente a base da distribuição. Porque o PIS/Cofins é um tributo que incide sobre bens e serviços. Proporcionalmente as pessoas com menor poder aquisitivo consomem mais a sua renda em bens e serviços do que os mais ricos. No médio prazo sim eles são beneficiados. No curto pelo menos não são prejudicados.
Por Cristina Sena, da Agência PT de Notícias