Por Flavia Rios e Alex Ratts*
Lembrar a memória e a história de luta desta destemida mulher negra é necessário sobretudo para que sua imagem e exemplo sirvam de inspiração para a juventude brasileira.
Minha querida amiga Flavia Rios e seu parceiro de trabalho, Alex Ratts, autores da biografia de Lélia Gonzalez, publicada pela Selo Negro/Summus, em 2010, nos trazem essa importante contribuição no artigo abaixo.
Em tempos de intensos protestos e mobilização por todo o país, é necessário trazer à tona a referência de uma grande personagem, que esteve no furacão das lutas pela democratização do Brasil. Intelectual, feminista e militante do movimento negro brasileiro, Lélia Gonzalez (1935-1994) nos legou vários dos temas que ainda agitam as reivindicações políticas brasileiras e levam milhares de pessoas às ruas.
Lélia de Almeida nasceu em primeiro de fevereiro de 1935 em Belo Horizonte e ainda criança migrou com a extensa família para o Rio de Janeiro, então capital do país, sob a proteção financeira do irmão mais velho, Jorge, jogador do time do Flamengo. Fez duas graduações na Universidade da Guanabara e tornou-se professora secundária, posteriormente seguiu a carreira docente, ocupando cadeiras em importantes estabelecimentos de ensino superior fluminenses, a exemplo da PUC/Rio e UERJ.
Como estudante e professora experimentou ascensão social via formas expressas de embranquecimento: realizou um casamento inter-racial, do qual vem o sobrenome Gonzalez; na escola aprendeu os gostos das classes médias e seu estilo de vida; fez amigos no seio do estrato médio carioca e adotou sua forma de viver, como o gosto pela bossa nova, a preferência por roupas e cortes de cabelo à moda “dos anos dourados”, incluindo o alisamento capilar e o uso de perucas. Era uma forte candidata ao ingresso no “mundo dos brancos” – parafraseando Florestan Fernandes.
Defrontada com a recusa e a rejeição ao seu matrimônio, sua experiência pessoal com o preconceito e a discriminação e a aproximação com a militância negra que se reorganizava no Rio de Janeiro pode ser entendida como parte das motivações que a levaram a ingressar na luta política. Em que pesem essas dimensões subjetivas para o seu engajamento político, o pensamento da autora é devedor, sobretudo, da rede de movimentos sociais em que se engajou em meados dos anos de 1970, época em que Lélia Gonzalez iniciou seus primeiros escritos. Ao lado de Abdias Nascimento e em paralelo com Beatriz Nascimento dentre outros(as) intelectuais ativistas negros(as), Lélia Gonzalez teve uma atuação nacional e internacional passando por países africanos, europeus e pelos Estados Unidos.
O racismo foi, pois, uma experiência que a enegreceu, ou, como ela gostava de dizer acerca das relações raciais em seu país natal: não se nasce negro, torna-se: “a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha dentre outras, mas tornar-se negra é uma conquista”. Ao parafrasear Simone de Beauvoir, antes recriada por Neuza Santos Sousa no livro “Tornar-se negro”, Gonzalez a um só tempo nos propõe uma versão não essencialista da raça − mostrando a possibilidade de reclassificação social − e revela a dificuldade de se tornar e ser negro(a) num país que apregoa a democracia racial, ao mesmo tempo em que propaga o branqueamento social e estabelece lugares sociais segregados com base em atributos adscritos por cor, sexo e condição de classe.
Seu trabalho intelectual foi marcado pela produção sobre a mulher negra, no qual conseguia explorar os significados sociais, ocupacionais e culturais relativos à naturalização das relações entre classe, raça, gênero e espaço. Por outro lado, Gonzalez não se cansou de denunciar as experiências diferenciadas de racismo por gênero e apontou a discriminação vivenciada pelos homens negros, apreendidos por lógicas de controle e dominação social, que envolvem desde violenta repressão policial até o extermínio físico.
Foi justamente essa postura de desnaturalização que tornou seu discurso e suas práticas irreverentes até mesmo para os círculos políticos mais progressistas que frequentava, especialmente a imprensa alternativa, os movimentos feminista, negro, de mulheres negras e homossexual. Nesse sentido, a trajetória e pensamento de Lélia Gonzalez têm muito a dizer sobre a perspectiva contra-hegemônica que ajudou a construir no Brasil.
* Alex Ratts, antropólogo, e Flavia Rios, socióloga, escreveram a biografia de Lélia Gonzalez, publicada pela Selo Negro/Summus, em 2010.
O livro “Lélia Gonzalez” pode ser encontrado no site da livraria cultura e de outras grandes livrarias, Há também em e-books, em livrarias como a Kitabo, no RJ e em sebos virtuais.