Dois dias após o domingo (8) em que um juiz de primeira instância achou por bem revogar a ordem de um magistrado de segunda instância, o clima é de ressaca no meio jurídico brasileiro. Não é à toa. Quando há uma quebra de hierarquia judicial da magnitude da que ocorreu no domingo, é custoso voltar à prática forense como se nada tivesse ocorrido.
Como esperar que as instituições funcionem normalmente, que se cumpra a lei e as ordens judiciais, com o exemplo dado no domingo por Sérgio Moro, que fez sua vontade valer mais do que a lei? Com o exemplo dado pelo desembargador João Gebran Neto, que atropelou as atribuições legais de um colega para atender aos interesses de um amigo? Com o exemplo dado pelo presidente de uma corte regional (TRF4), que tomou decisão que acabou por prestigiar todos os desmandos vistos ao longo de todo o domingo?
Veja, abaixo, o que dizem nesta segunda-feira os profissionais que têm que continuar trabalhando com o Direito após tudo o que se viu no último domingo.
André Lozano Andrade, coordenador do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais): “Medidas excepcionais estão se tornando a regra quando se fala em Lava Jato”
Por mais que exista dúvida se a decisão do desembargador Favreto era amparada ou não em algum fato novo, não cabia ao juiz Sérgio Moro fazer essa análise. Ele não poderia, nem se estivesse trabalhando, atuar para que a decisão não fosse cumprida. Com relação ao relator da Lava Jato no TRF4, João Gebran Neto, é estranho que tenha avocado para si o habeas corpus em pleno domingo.
Parece-me que isso se deu mais pelo caráter pessoal do paciente (Lula) do que pelo caso em si. Parece ficar cada vez mais claro a parcialidade do Moro e que medidas excepcionais estão se tornando a regra quando se fala em Lava Jato, especialmente quando Lula está envolvido.
Celso Vilardi, criminalista e professor de Direito da FGV-SP: “Um dia escuro, triste para o Judiciário”
“Um dia escuro, triste para o Judiciário. É uma sucessão de erros. O desembargador nitidamente não tinha jurisdição para decidir dessa forma porque o caso está no Supremo Tribunal Federal. Ainda que equivocada, a decisão teria que ser cumprida, e um juiz de 1ª instância não poderia descumpri-la. O delegado também teria de cumprir a decisão, obedecer ao desembargador, que é a autoridade máxima na questão. A medida correta seria uma reclamação no Supremo por parte do MP, se ele entende que a decisão do desembargador é equivocada, para que a presidente Cármen Lúcia pudesse cassar ou não a decisão. Na sequência, também lamentavelmente, Gebran retoma os trabalhos de maneira excepcional.
Fica uma sensação de um Poder Judiciário enfraquecido, uma sensação de insegurança jurídica para a população. Justo por parte do Judiciário, que deveria dar essa sensação de segurança. É uma sucessão de erros que poderia ser evitada com uma decisão de Cármen Lúcia, que tem a jurisdição para tal. Todas as decisões restantes são ou excepcionais ou irregulares. Na medida em que começa uma disputa entre desembargadores do mesmo tribunal vira essa bagunça. O Judiciário brasileiro sai muito menor desta crise.”
Vitor Sartori, professor da Faculdade de Direito e Ciências do Estado da UFMG: “Depois do processo de impeachment e dos diversos julgamentos em que Lula foi réu, só um cego acreditaria que a questão central é jurídica”
Do ponto de vista jurídico, no Brasil posterior ao golpe parlamentar de 2016, não há muito a se comentar, pois, em um país em que a esfera pública é autocrática, o central não é o Direito e a sua correta interpretação. Em verdade, os diferentes julgamentos de Lula – não obstante tenham remetido a diversos ‘argumentos de autoridade’ (nem sempre bem articulados, muitas vezes pessimamente colocados) – são a mais clara expressão do ímpeto manipulatório inerente ao Direito burguês.
Este aspecto fica mais destacado em momentos como o presente, em que há uma estrondosa derrota da classe trabalhadora. Tal derrota decorre, embora não só, e talvez nem mesmo de modo central, de certas ilusões quanto ao Direito e ao papel dos órgãos colegiados, notoriamente do STF: se necessário aos interesses das classes dominantes, tais órgãos efetivamente fazem um julgamento exclusivamente político, usando o aparato jurídico como revestimento supostamente legal de suas decisões. Depois do processo de impeachment, e dos diversos julgamentos em que Lula foi réu, só um cego acreditaria que a questão central é jurídica.
O espetáculo horroroso de ontem, com juiz de férias se negando a cumprir decisão de desembargador e com vasta e tendenciosa cobertura midiática, é a mais clara expressão disso. O problema talvez seja que aquilo que mantinha o caráter elitista e classista do Direito menos escancarado nestes casos (pois quando se trata das classes trabalhadoras e da população negra marginalizada, isto sempre foi escancarado) era certa mobilização e luta populares, que perderam sua força diante de alianças escusas dos governos precedentes e da assim chamada governabilidade.”
Luiz Flávio Borges D’Urso, advogado criminalista e ex-presidente da OAB-SP: “O que se viu neste domingo não tem nada a ver com nossa legislação”
“Independente dos impetrantes ou do paciente (favorecido), tecnicamente, liminar em habeas corpus se cumpre e depois se recorre (o Ministério Público) caso não concorde com ela. Ordem concedida em segundo grau deve ser cumprida pelo juízo de primeiro grau, a quem não cabe concordar ou discordar da ordem. Futuro relator do HC, mesmo que prevento, deverá se manifestar em seu relatório quando o HC lhe for concluso, podendo manter ou revogar a liminar concedida pelo plantão, a qual, tecnicamente, já teria sido cumprida. Esse é o sistema processual vigente no Brasil. O que se viu neste domingo não tem nada a ver com nossa legislação.”
Fernando Hideo Lacerda, professor de Direito Processual Penal da Escola Paulista de Direito: “Não podemos sequer chamar essa perseguição de ‘processo penal'”
“Todos sabemos que aos domingos não tem expediente no judiciário, então o único magistrado que pode decidir casos urgentes é aquele designado para o plantão. A decisão do presidente do TRF4 que revogou a liminar do juiz plantonista (o único que poderia decidir sobre a medida liminar) é teratológico. Após o juiz Sergio Moro interromper suas férias e o desembargador Gebran Neto interromper sua folga dominical, o presidente do Tribunal entrou em cena em plena noite de domingo para manter o réu preso. Penso que não podemos sequer chamar essa perseguição de “processo penal”. Mas o que esperar da presidência de um Tribunal que admitiu o Estado de Exceção pra reconhecer que a lava jato não precisa seguir regras de casos comuns?”
Anderson Bezerra Lopes, advogado criminalista: “uma completa subversão do papel desenhado pela Constituição Federal para um juiz federal”
O que se viu no último domingo foi uma completa subversão do papel desenhado pela Constituição Federal para um juiz federal. Durante o plantão judiciário, a competência do plantonista é plena, valendo desde o início até o fim do plantão. Nesse ínterim, cabe ao plantonista decidir sobre toda e qualquer questão urgente que lhe seja submetida.
Nesse sentido, deferida a ordem de soltura, ela somente poderia ser revogado por instância superior ou revista pelo órgão colegiado após o fim do plantão. Jamais poderia um juiz de instância inferior ou mesmo um par do desembargador plantonista questionar a ordem de soltura ou determinar à autoridade policial que ela não fosse cumprida. Aliás, qualquer contestação a essa ordem haveria de partir do ministério público federal, parte acusadora, jamais de um juiz, que deve manter-se equidistante, não é parte no processo.
Octavio Orzari, advogado: “Exacerbada intervenção judicial na política enfraquece o próprio Poder Judiciário”
“A Constituição é clara em dizer que toda e qualquer pessoa somente pode ser considerada culpada após o trânsito em julgado. Esse princípio foi flexibilizado, segundo uma alegada necessidade de efetividade da punição e rapidez do processo, para se decretar inelegibilidade e, mais recentemente, prisão, após decisão colegiada de tribunal. Ocorre que, para um lado ou para o outro, alguns processos tramitam mais celeremente do que outros, conforme desempenho dos atores processuais, inclusive do Judiciário, ocasionando forte insegurança jurídica sobre a política e sobre a liberdade do cidadão.
A raiz da questão é que a flexibilização de um princípio constitucional deu margem à politização de decisões judiciais e à exacerbada intervenção judicial na política, o que enfraquece o próprio Poder Judiciário, cuja desejável imparcialidade vira alvo de questionamentos de ordem política. O Judiciário não se entende internamente, há divergências sobre competência e hierarquia das instâncias e não entrega certeza jurídica aos cidadãos. Ao contrário de se buscar atender ao clamor popular ou ímpeto de punição, a máxima efetividade deve ser a da democracia representativa e da liberdade do cidadão.”
Thais Reis e Vinícius Segalla, da Agência PT de Notícias, com informações do site Consultor Jurídico