Cada vacina a menos é uma morte a mais. É com esse enfoque que devemos encarar a proibição, na semana passada, da agência reguladora brasileira, a Anvisa, ao uso excepcional da vacina russa Sputnik V no Brasil. A situação é delicada e a ninguém pode interessar descreditar a qualidade técnico-científica da Anvisa, nem tampouco levantar um mar de suspeições sobre uma boa vacina concebida pelo centenário instituto russo Gamaleya. Esta vacina –reconhecida pela mais credível publicação científica internacional, a revista Lancet– já vem sendo aplicada em 62 países do mundo.
Modelos de negócios próprios, de cultura diversa, como é o caso do Fundo Soberano Russo, que financiou e coordena a venda da vacina no mundo, também devem ser respeitados. Interesses mútuos, bem coordenados e debatidos adequadamente, sempre acabam confluindo para boas soluções. Tanto técnico-científicas como negociais.
Já hoje existe uma demanda objetiva de 66 milhões de doses da Sputnik V, firmada por meio de contratos e carta de intenções de compra entre o consórcio de governadores do Nordeste, estados do Sudeste, como o Espírito Santo, e diversas prefeituras. São vacinas que, se não vierem para o Brasil, certamente irão para outros países. É preciso senso de urgência.
Apesar da forte contaminação política causada pelo desprezo à vida do presidente da República, queremos crer nas palavras do presidente da Anvisa, almirante Antônio Barra Torres, de que a politização do tema envolvendo a Sputnik V em nada contribui para a solução da controvérsia que levou ao bloqueio da importação excepcional do produto. “Ciência é a única coisa em discussão”, disse ele.
De nossa parte, ainda acreditamos no poder de discernimento técnico dos profissionais da Anvisa. É a partir daí que urge resolver o quanto antes o problema. E há um caminho rápido e imediato para tanto.
É preciso uma ação proativa da Anvisa, porque a Anvisa é do Brasil. Trata-se de uma agência de Estado, imprescindível para a saúde dos brasileiros, que não pertence ao governo Jair Bolsonaro ou a qualquer outro governo. Desta forma, advogamos que é fundamental a convocação do Comitê Técnico Temático de Produtos Biológicos e de Biotecnologia da Anvisa. E que outros cientistas brasileiros sejam convocados para analisar o caso, oferecendo seus pareceres de forma isenta.
Conclamamos ainda o Instituto Gamaleya e o Fundo Soberano Russo no sentido de que coloquem à disposição dos técnicos da Anvisa e cientistas brasileiros convidados a opinar, no mais breve espaço de tempo, o conjunto de informações que ainda possam estar pendentes. Com isso, é possível remover os obstáculos, de modo que possamos ter a vacina Sputnik V o mais rápido possível.
O Brasil já ficou para trás na vacinação por causa do preconceito de Bolsonaro contra o que ele chamava de “vaChina”. Em dado momento de outubro do ano passado, ele desautorizou o seu então ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, a fechar um acordo com o Instituto Butantan para a compra da Coronavac. Voltou atrás depois de intensa pressão social. Bolsonaro também determinou a absurda recusa do Ministério da Saúde em comprar outras vacinas oferecidas no ano passado, como foi o caso do imunizante da Biontech/Pfizer. Episódios sobre os quais a CPI da Covid no Senado se debruçará ainda mais e exporá a todos os brasileiros.
Também advogamos o estabelecimento de uma força-tarefa envolvendo os Ministérios da Saúde e das Relações Exteriores do Brasil e da Rússia, bem como suas agências reguladoras, com a participação ativa da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, na mediação dessa disputa. Isso será fundamental para permitir que o Brasil tenha acesso e direito a mais vacinas, a começar da Sputnik V. Se o governo não tem senso de urgência, nós e o povo brasileiro temos.
Arthur Chioro, médico, é ex-ministro da Saúde (fev.2014-out.15; governo Dilma) e professor da Unifesp
Edmundo M. Oliveira, jornalista, consultor e assessor da bancada estadual do PT na Assembleia Legislativa de São Paulo