Partido dos Trabalhadores

Valter Pomar: Tarso Genro e a festa do PT

“O PT merece ser defendido, entre muitos outros motivos, porque a classe dominante quer destruir o Partido, porque as elites sabem o efeito que isso teria sobre a classe trabalhadora como um todo”

Lula Marques/Agência PT

No dia 7 de fevereiro de 2020, os petistas receberam dois “presentes” antecipados: uma entrevista de Aloizio Mercadante à Folha de S.Paulo e um texto de Tarso Genro publicado no UOL.

Sobre o que diz Mercadante, tratarei noutro texto. Aqui quero comentar o que diz Tarso Genro, a quem leio (e discordo) desde os anos 1980.

Como Tarso, não participarei da festa/festival dos 40 anos do PT, no Rio de Janeiro. Mas meus motivos não têm nada que ver com os de Tarso: não vou porque sou delegado ao congresso do Andes, que vai até sábado 8 de fevereiro, de noite.

Os motivos de Tarso são outros. Segundo ele: “Não me sinto identificado, hoje, com o tipo de visão que o PT construiu de si mesmo.”

Engraçado, porque a maneira como o PT “construiu [uma visão] de si mesmo” foi uma luta interna e publica duríssima.

E desde o início dos anos 1990, Tarso esteve ao lado dos que até agora venceram esta luta.

Que ele não se reconheça na obra que ajudou a construir é problema dele. Mas que ele queira “jogar a criança fora, junto com a água de banho”, é problema de todos.

Afinal, um partido pode e deve ser “julgado” por vários motivos. Mas quando Tarso diz não se sentir “identificado” com as posições do PT, por conta da visão que o PT teria de si mesmo, ele está deixando de lado ou secundarizando algo a meu juízo essencial, que é o “lugar” concreto do PT na luta de classes.

O PT merece ser defendido, entre muitos outros motivos, porque a classe dominante quer destruir o Partido, porque as elites sabem o efeito que isso teria sobre a classe trabalhadora como um todo.

Tarso diz que o PT “teve que fazer uma série de modulações na sua linha política que bloquearem a sua renovação”.

“Teve”???

O PT fez determinadas “modulações” (e não outras) porque “teve que fazer”?

Ou porque, na luta interna e publica acerca dos rumos do Partido, determinadas escolhas prevaleceram?

No fundo, Tarso parece não perceber que o problema está exatamente no seguinte: o partido escolheu fazer apenas “transformações democráticas” e escolheu fazer isso através de métodos “republicanos” que o colocaram numa armadilha, da qual ainda não saímos.

Falta ao Tarso um pouco de dialética na análise da contraditória trajetória do PT. E talvez falte porque ele se julgue corresponsável pelo que foi feito de positivo; e “irresponsável” pelo que houve de negativo.

Tarso diz que “ao longo destes 40 anos ocorreram composições e renúncias que nunca ficaram esclarecidas. Não sei se algumas destas concessões não foram renúncias de princípios”.

Basta folhear os textos do próprio Tarso, ao longo destes 40 anos, para localizar algumas das, na minha opinião, mais importantes “renúncias de princípios”: ao socialismo, a revolução, a luta de classes, ao papel de vanguarda do partido.

Todas essas e muitas outras “composições e renúncias” foram exaustivamente “esclarecidas”, em debates dos quais Tarso foi parte muito ativa.

Aliás, como todos nós, Tarso tem memória muito seletiva.

Ele lembra que foi presidente interino do PT “na época em que o mensalão estava no auge”. E diz que recuou de ser candidato à presidência nacional do PT porque “o pacto hegemônico do partido” (…) “não pretendia se renovar. E na minha opinião, não se renovou até hoje”.

Minha memória daqueles episódios é outra. Para poupar tempo, remeto para a leitura de dois textos que escrevi na época:

Péssima, mas previsível decisão
Texto divulgado em 29 de julho de 2005.
https://valterpomar.blogspot.com/2012/01/pessima-mas-previsivel-decisao.html?m=1

Alguns comentários sobre a candidatura Tarso Genro
Texto publicado em 19 de agosto de 2005.

https://valterpomar.blogspot.com/2012/01/alguns-comentarios-sobre-candidatura.html?m=1

Voltando ao texto de Tarso na UOL, ele afirma que “nós temos um discurso e um programa ancorado na época em que o partido foi fundado e ainda agimos como se existisse uma classe trabalhadora nas fábricas que teria potencial hegemônico na sociedade. Operamos como se o nosso trabalho fosse organizar esta classe de pessoas para lutar por uma utopia. Isto mudou radicalmente”.

Eu adoraria que o problema real do PT fosse este. Mas não é. Simplesmente não é verdade que o pensamento médio ou o discurso oficial do Partido, hoje, seja esse.

Minha impressão é que Tarso está em “modo looping”, eternamente prisioneiro da autocrítica da variante marxista que ele próprio abraçou nos anos 1970, por exemplo repetindo mais ou menos coisas que ele já falava na época da dissolução da URSS.

O que é cômodo, pois o libera de analisar autocriticamente o que fez a partir dos anos 1990 e até hoje, substituindo isto por uma eterna autocrítica do que acha que fez ou deixou de fazer nos anos 1960-1980.

Sobre o mérito de algumas das questões enunciadas por Tarso, acerca da classe trabalhadora, remeto ao que disse aqui: http://valterpomar.blogspot.com/2019/08/comentarios-sobre-entrevista-de-marcio.html?m=1

Agrego que devemos sim “pregar a restauração da CLT”, sem prejuízo algum de defender um “sistema público protetivo que envolva” os “excluídos das legislações trabalhistas”.

Aliás, a embocadura proposta por Tarso — em nome de um suposto realismo, tratar como inexoráveis determinados processos e situações — contribui para o quê ou quem? Para os que estão destruindo os direitos ou para os que estão defendendo estes direitos?

Não estou dizendo, óbvio, que não existam muitas questões novas. Sempre há. O que estou dizendo é que algumas destas questões não são tão novas assim. Estou dizendo, também, que algumas vezes fala-se de novidades, apresentando-se como resposta “remédios” com prazo de validade vencido.

Um exemplo indireto disso, quase um ato falho, é a referência que Tarso faz a declaração de “um amigo dirigente do Partido Socialista chileno” sobre “como eles foram atropelados pelas manifestações que assolaram aquele país”.

Claro que foram atropelados. Mas por qual motivo foram atropelados? Porque não entendiam os novos temas e atores sociais? Ou foram atropelados porque há décadas tornaram-se agentes do social-liberalismo?

Tarso dá a entender que nosso discurso envelheceu: “Estamos falando em vão, com formas discursivas que amplos setores da sociedade não prestam mais atenção.” Mas não seria o caso de perguntar por quais motivos o neofascismo consegue êxito, adotando muitas vezes um discurso medieval? Na realidade, se quisermos mesmo derrotar o neofascismo, a reação da esquerda precisará ser mais plebeia, mais vintage digamos assim.

Tarso fala disto, mas pela negativa: “no Brasil também existe a possibilidade de movimentos de rebeldia política e econômica. Eles não têm direção, um organizador, e podem ser aproveitados pelo fascismo”. Claro que isto pode acontecer. Mas, por outro lado, não há caminho para derrotar o neofascismo, que não inclua rebeliões populares.

Tarso diz que “a luta é pela hegemonia. E a luta da hegemonia se faz através de valores”. Isto é parcialmente correto, pois não bastam “valores”, há que ter força material. Mas o problema é que no terreno dos “valores”, Tarso não enfatiza a luta pelo socialismo, pela revolução.

Pelo contrário, sua inspiração é o progressismo: “Acho que a frente ampla do Uruguai é uma inspiração”.

Tarso não analisa por quais motivos a FA perdeu as eleições. Subestima o perigo neofascista no Uruguai. E não adota, no caso da FA, o mesmo critério que adota para criticar o PT.

Uma decorrência prática do “progressismo” que orienta a visão de Tarso é sua defesa de que, “para compor uma frente de esquerda o PT precisa trabalhar com a possibilidade de não indicar o candidato em uma chapa na eleição presidencial. E acho que se o PT não está preparado, tem que se preparar para isto”.

Ou seja, devemos fazer voluntariamente aquilo que grande parte da direita tenta, há anos, fazer na marra. Algo totalmente artificial, sob pretexto de que “não podemos ser hegemônicos pré-datados”.

Tarso também opina sobre a necessidade de “revisão de procedimentos” nas “políticas partidárias internas”. E aponta o dedo acusador para um tal “grupo paulista”. Abordagem que, além de apresentar divergências políticas como se geográficas fossem, hoje serve para desviar o foco de posições como as implementadas por Rui Costa e Camilo Santana.

Mais infeliz ainda é o tratamento dado à ex-presidenta Dilma Rousseff. Na hierarquia dos motivos pelos quais o golpe teve êxito, é um despautério dar o destaque que Tarso dá à “enorme dificuldade de compreender de maneira adequada as diferenças internas”.

Até porque, cabe lembrar, o quinto congresso nacional do Partido respaldou a política econômica adotada pelo governo Dilma em 2015. Para não falar de Temer na vice, da composição do STF, do republicanismo no trato com a PF e com a Lava Jato.

De resto, espero que Tarso chegue e passe dos 90 anos e, também, que siga militando e escrevendo. Mas espero que suas atuais posições não prevaleçam futuramente, pois elas contribuíram muito para a enrascada em que estamos hoje.

Valter Pomar é militante do PT Campinas