Há 37 anos, um congresso dos metalúrgicos em São Paulo lançou o chamado a todos os trabalhadores brasileiros a “se unificarem na construção de seu partido, o Partido dos Trabalhadores”. Uma novidade extraordinária no Brasil: operários, em um momento de intensas lutas contra uma ditadura civil-militar, decidem criar uma organização política própria e apresentar uma alternativa de poder. Um partido que não seria “eleitoreiro” – um partido “sem patrões”, porque, para além de disputar as eleições, serviria principalmente para organizar e mobilizar “os trabalhadores na luta por suas reivindicações e pela construção de uma sociedade justa, sem explorados e exploradores”.
No início do ano seguinte, nasce o PT. Um partido novo, não somente por ser recém criado, mas porque negava a estratégia de uma esquerda tradicional ligada aos partidos comunistas acostumada com os acordos de cúpulas com as velhas oligarquias e ao modelo verticalizado de centralismo burocrático de organização. O PT nasce de baixo para cima, com núcleos de base debatendo e formulando política, com princípios claros e profundas raízes na sociedade.
Com menos de uma década de existência, em 1989, após ser a principal força motriz no processo de redemocratização do país, tendo rejeitado a imposição por cima da eleição presidencial de 85 através do Colégio Eleitoral, o partido disputa o segundo turno de uma eleição nacional com a candidatura de Lula. Perde eleitoralmente, dado o debate fraudulento da Globo e as manipulações eleitorais de todo o tipo, mas tem um ganho político fabuloso. Aglutina em torno de si o conjunto de forças sociais progressistas, com um programa popular de defesa de amplas reformas de base e avanços democráticos pra o Brasil.
O programa de 1989 apresentava, pela primeira vez, uma estratégia de poder mais bem definida para uma eventual vitória eleitoral do partido, denunciando os limites do Estado capitalista e apresentado como alternativa a mobilização social para criar as condições para a implementação das reformas propostas. Após ter se negado a votar na Constituição de 1988, saída de um processo Constituinte Congressual e não soberano, o Programa de Lula em 89 retoma a pauta popular das organizações dos trabalhadores do campo e da cidade, que havia emergido nas mobilizações pela Assembleia Constituinte Soberana anos antes.
O PT era novo porque estava comprometido em fazer profundas mudanças no país, contando com a participação organizada dos trabalhadores – vem daí o papel destacado do partido na criação da CUT e sua aliança com o MST e tantas outras organizações populares. O PT era novo porque desejava as mudanças profundas nas estruturas desiguais da sociedade brasileira, nunca toleradas pelas elites econômicas. O PT era novo porque apresentava uma estratégia clara e um programa de desenvolvimento soberano da nação brasileira. Mesmo com toda propaganda negativa pelos meios de comunicação e o terrorismo da direita brasileira contra o PT, o partido ganhou parte importante da preferência nacional.
Na década de 1990, todavia, após o fim da União Soviética – confundida com a derrota de um “socialismo realmente existente” – e a hegemonia do consenso de Washington, o PT se transformou. Muitos dos seus dirigentes passaram a assimilar a ideia de que a experiência do suposto socialismo da URSS havia fracassado e que o único horizonte histórico possível passava a ser o capitalismo, cabendo às organizações dos trabalhadores o papel de humanizá-lo, refreando seus aspectos mais sórdidos.
O partido abdicou de sua estratégia e moderou seu discurso. Decidiu, mesmo diante a um acirramento das lutas políticas, privilegiar a disputa institucional no interior do Estado, acreditando que o programa do partido poderia ser adotado sistematicamente através dos postos conquistados nos poderes legislativo e executivo, em todas as esferas, sobretudo se conquistado o governo federal. O partido agiu para atrair lideranças locais com potencial eleitoral, mesmo que sem qualquer identificação com a tradição petista ou qualquer cacoete de esquerda. Passou a admitir as mais amplas alianças, numa ótica da conciliação de classes, o que permitiu buscar financiamento junto às grandes empresas, as mesmas que financiavam os partidos da direita.
Apesar dessas alianças, e tendo a maioria do povo brasileiro acumulado uma experiência negativa com os sucessivos governos recessivos e privatistas de FHC, o partido – por seus anos de reconhecida luta em favor dos direitos sociais – se tornou um fenômeno nas urnas, mantendo um patamar de 30% dos votos dos eleitores brasileiro nas duas eleições nacionais subsequentes e elegendo Lula em 2002, com 62 milhões de votos, junto com uma bancada de 90 deputados federais.
O governo petista foi capaz de realizar inúmeras mudanças expressivas no Brasil, garantindo três reeleições federais consecutivas de seus candidatos, além de executar programas que permitiram tirar milhões de pessoas da miséria, expandir o crédito, dar acesso aos mais pobres às universidade e à moradia, efetivando direitos até então adormecidos nas letras frias da lei. No entanto, as reformas de base, as mudanças mais fundamentais, como a reforma agrária, a reestatização da Vale, avanços nas relações trabalhistas para a redução da jornada de trabalho sem redução de salários, uma reforma tributária progressiva e que desse fim à política de superávit primário, a própria auditoria da dívida pública e uma lei de mídia, foram esquecidas nos 13 anos de governo do PT.
Esse caminho, diferente do que propunha o programa de 1989, estava alicerçada em efetivar uma governabilidade através de uma acomodação do partido às instituições políticas vigentes. Os movimentos sociais foram convocados a compor conselhos tripartites, para consolidar “acordos” entre classes, em uma estratégia evidente de captura e adestramento, buscando um governo acima das classes. Desta forma, os trabalhadores não foram chamados pelos governos petistas para transformar as instituições do Estado, cujas estruturas arcaicas foram criticadas pelo PT desde seu nascimento, e mudar a correlação de forças para criar as condições que permitissem a efetivação de mudanças mais profundas na sociedade, como desejavam os metalúrgicos de São Paulo há 37 anos.
As reformas pretendidas inicialmente pelo partido nunca foram sequer propostas porque sempre esbarraram nos limites impostos pela enorme coalizão que compunha o governo, sobretudo pela força reacionária representada pelo PMDB. A pauta mais estrutural apresentada pelo partido, através do parlamento e não por iniciativa do executivo, já no segundo mandato de Lula, a partir de uma pressão da CUT e de outras centrais sindicais, foi a redução da jornada semanal de trabalho para 40 horas, projeto engavetado pelo então presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB), deputado que se tornou posteriormente o vice na chapa da Dilma na eleição de 2010.
As lideranças do PT se mantiveram firmes na defesa do governo, mas não eram capazes mais de responder a perguntas simples: “qual a estratégia do PT no governo?”, “aonde queremos chegar?” ou “como fazer para avançar?”. O partido já não tinha mais nenhuma perspectiva para além de ser governo, nos limites da governabilidade do presidencialismo de coalizão e implementando as políticas mais progressistas apenas nas pequenas fissuras desta camisa-de-força, sem um projeto de transformação mais profundo e baseado em um enfrentamento ao poder estabelecido.
Quando a situação econômica do país piorou, com o desaquecimento da economia, as margens para os acordos com os grandes grupos econômicos desapareceram, sobretudo com o mercado financeiro. Eles exigiram a adoção de medidas enérgicas para concentrar a renda nacional em suas mãos, compensando as perdas do mercado. Uma tarefa que, mesmo com todas as concessões que o governo Dilma se dispôs a fazer para acalmá-los, não foi possível estabelecer um armistício.
A estratégia dessa elite, desde 2013, foi tirar o PT do governo a qualquer custo. Os meios de comunicação jogaram um papel central para capturar a insatisfação de uma parcela das camadas médias brasileiras e transforma-la em uma batalha campal contra o partido. Os grupos fascistas ganharam audiência e passaram a jogar, paulatinamente, um papel ideológico central na condução das manifestações contra o governo. A direita brasileira retomou com força total a sua estratégia de criminalizar do PT através do espetáculo judicial da “lava-jato”- o que já haviam feito com o “mensalão” e contra o qual o partido não opôs resistência, agora em condições muito mais favoráveis.
Logo após a reeleição de Dilma, em 2014, em uma disputa muito apertada com o candidato tucano, Aécio Neves, o governo decidiu entregar a condução da economia a um representante dos bancos – Joaquim Levy, contrariando o discurso da campanha eleitoral do PT. Mesmo que repleto de contradições e vacilações, em um evidente conflito na cúpula partidária e no Planalto, a presidente Dilma assumiu o discurso do “ajuste fiscal” derrotado nas urnas e iniciou a implementação de uma série de medidas restritivas à direitos previdenciários e trabalhistas.
O mercado, contudo, exigia uma profundidade ainda maior na implementação desse ajuste, em uma velocidade que o governo não tinha sequer condições de adotar – mesmo que fosse esse o seu desejo -, por conta da grande resistência de sindicatos, intelectuais de esquerda e da própria militância petista.
A ausência de um projeto econômico e político de fato alternativo por parte do governo, capaz de polarizar o país em uma verdadeira disputa de rumos, inclusive contra os supostos aliados ao governo e seu vice, Michel Temer, criou um vazio político ocupado paulatinamente pela crítica ao governo e um afastamento de sua base social, ao mesmo tempo em que se intensificava o linchamento moral espetacular do PT e de suas lideranças através do judiciário e da grande imprensa empresarial, que andava pari passu com a agenda do golpe.
O PT estava nas cordas. O impeachment foi a consequência desse processo, sem uma reação capaz de fazer frente ao processo de cassação da presidente eleita, com o objetivo de impor os retrocessos em conquistas sociais e direitos trabalhistas assegurados há décadas, na velocidade exigida pelo mercado.
É bom que se diga, que a fragorosa derrota eleitoral do partido nas eleições municipais de 2016, com a perda de 10 milhões de votos (num cenário de grande abstenção, brancos e nulos), mostrou a profunda insatisfação da própria base eleitoral do PT com a política implementada por sua direção, o que deixou claro a incapacidade de forte enfrentamento ao golpe parlamentar-judicial-midiático.
Mesmo com um governo sem legitimidade, com a rejeição da maioria absoluta da população, mas com o apoio da maioria parlamentar, Temer dá seguimento ao golpe que o colocou no poder, impondo uma série de projetos extremamente agressivos de cortes em gastos sociais.
O partido que já foi o “novo”, depois de uma experiência de 13 anos de governo, com acertos e também opções ruins, teve seu diálogo interditado com amplos setores da sociedade, sobretudo uma parte significativa dos trabalhadores e jovens. Esse diálogo precisa ser restabelecido.
Mas para isso o PT precisa ser novamente o Partido dos Trabalhadores, de todos aqueles que vivem do seu próprio trabalho (operários, trabalhadores do campo e da cidade, prestadores de serviço, profissionais liberais, pequenos empreendedores, pequenos empresários, artistas). Precisa encantar pelos seus propósitos, seus princípios e seu projeto verdadeiramente alternativo de poder. Precisa voltar a ser agregador, generoso e enxergar uma nova geração da classe trabalhadora, uma nova juventude, que faz política e não se identifica com esse sistema político. Precisa voltar a ser um partido para além das eleições, afastando aqueles que querem aparelhar a sigla apenas para seus interesses pessoais e de carreira política, pensando na manutenção a qualquer custo de seus mandatos e cargos.
O PT precisa voltar a ser novo, como foi em seu nascimento. Voltar a ter clareza de suas estratégias, dos limites do Estado – montado para servir aos negócios da classe dominante – e das disputas eleitorais. Precisa voltar a acreditar em uma sociedade livre, em um socialismo com a mais ampla democracia, liberdade e participação popular. Sem medo de ser PT.
Queremos um PT novo de novo.
Por André Machado, candidato a presidente do PT de Curitiba, na chapa unitária composta por todas as correntes do partido, para a Tribuna de Debates do 6º Congresso. Saiba como participar.