Reafirmando a estratégia de sabotagem a toda e qualquer ação de combate à pandemia do coronavírus desde o surgimento do surto, Jair Bolsonaro afirmou, na terça-feira (1º), que a população brasileira não é obrigada a tomar vacina contra o vírus. Após a declaração desastrosa, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República) tornou oficial a campanha de desinformação do governo, replicando a fala do presidente em suas redes sociais.
“O governo do Brasil investiu bilhões de reais para salvar vidas e preservar empregos. Estabeleceu parceria e investirá na produção de vacina. Recursos para estados e municípios, saúde, economia, tudo será feito, mas impor obrigações definitivamente não está nos planos”, diz a nota da Secom.
Especialistas avaliam que a campanha contra a vacinação do governo é inconstitucional. “Nenhum direito fundamental é absoluto, ou seja, o direito à liberdade não é absoluto a ponto de estar acima do direito à saúde das outras pessoas”, afirma a professora de direito constitucional Estefânia Barbosa da UFPR (Universidade Federal do Paraná), em declaração à ‘BBC News’.
Segundo o senador Humberto Costa (PT-PE), em um cenário de pandemia como o que o país atravessa, a saúde pública deve prevalecer sobre a liberdade individual. “Quando o interesse público, coletivo, está em jogo, a liberdade individual perde o sentido”, afirmou o senador, que foi o primeiro ministro da Saúde do governo Lula. “É inteiramente absurdo que alguém imagine que a vacinação deva ser algo de mera escolha das pessoas”, disse Costa, em vídeo veiculado nas redes sociais.
Saúde, dever direito de todos, dever do Estado
O Artigo 196 da Constituição Federal determina que saúde é um direito de todos e um dever do Estado. “Num momento como esse, em que vacinas, desde que tenham passado por todos os testes e sejam recomendadas pelas autoridades de saúde, serão possivelmente a melhor resposta para a pandemia, o governo tem a obrigação de divulgar, incentivar e garantir uma política pública ampla de vacinação”, observa o professor de direito constitucional da FGV (Fundação Getulio Vargas), Roberto Dias, em comentário à ‘BBC’.
A declaração de Bolsonaro também é contrária à Lei 13.979, sancionada em fevereiro pelo próprio presidente, que determina “realização compulsória de vacinação”, entre outras medidas para “proteção da coletividade”. A lei também decretou estado de calamidade pública até o final do ano. “Isso demonstra que o presidente não foi capaz sequer de ler aquilo que ele enviou ao Congresso”, afirmou Costa, apontando mais uma contradição de Bolsonaro.
Vacinação obrigatória
Segundo o artigo 3º, inciso III da lei sancionada pelo presidente, a determinação de realização compulsória, ou seja, de caráter obrigatório, inclui exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos. Também estabelece o uso obrigatório de máscaras de proteção individual, incluído pela Lei 14. 019, de 2020.
A vacinação compulsória de crianças e adultos no país é determinada pelas autoridades sanitárias, sob orientação do Ministério da Saúde, que estabelece as vacinas que são obrigatórias em cada região do país. “É dever de todo cidadão submeter-se e os menores dos quais tenha a guarda à vacina obrigatória”, diz artigo 29 do decreto que regulamenta o Programa Nacional de Imunizações.
Atitude genocida
“A vacina para covid-19 tem um desafio cientifico que não foi alcançado ainda. E Bolsonaro fala como se já tivesse a vacina na mão para estimular sua atitude genocida das pessoas entrarem em contato, aumentar a transmissão e o número de mortes na retomada das atividades de forma irresponsável”, criticou o deputado federal e ex-ministro da Saúde, Alexandre Padilha (SP), em depoimento à ‘Rede Brasil Atual’.
Padilha reafirmou que o setor de saúde não é prioridade de Bolsonaro, assim como a vacinação. “Ele retira R$ 35 bilhões para a área. Então, não é que o Bolsonaro vai obrigar ou não, ele não vai investir em garantir vacinas pro povo brasileiro”, observou o deputado, referindo-se à proposta de orçamento para a pasta da Saúde enviada ao Congresso Nacional. “Esse orçamento, com menos R$ 35 bilhões, não garante vacinas pra ninguém, nem quem quer e nem para quem não quer. Pior ainda é estimular um órgão do governo federal a publicizar seus pensamentos irresponsáveis”.
Legado dos governos do PT
Com o corte no setor de Saúde previsto para 2021, o Programa Nacional de Imunizações não conseguirá nem recompor os valores das verbas de 2019, de R$ 5,73, bilhões, devendo ficar em torno de R$ 5,3 bilhões. A taxa de abandono das vacinas que exigem mais de uma dose subiu de 15,34% em 2018 para 23,36% em 2019. Neste ano, já está em 22,03%, o que confirma a disposição do governo em desestimular as imunizações.
Durante os governos do PT, ao contrário do desmonte da Saúde promovido por Bolsonaro e, anteriormente, pelo governo Temer, Lula e Dilma ampliaram a oferta de vacinas e investiram na capacidade tecnológica dos laboratórios públicos. O resultado foi uma expressiva redução da incidência de doenças previsíveis, levando ao reconhecimento internacional da Organização Mundial Mundial de Saúde (OMS) e da Orgzanição Pan-Americana de Saúde (OPAS).
Foi fortalecido o papel de laboratórios produtores públicos como o Instituto Butantan, em São Paulo, Bio-Manguinhos e Instituto Vital Brasil, no Rio de Janeiro, FUNED, em Minas Gerais, TecPar, no Paraná. As politicas públicas garantiram autonomia na produção de produtos fundamentais para a saúde pública, como os soros e vacinas.
Revolta da Vacina
O nível de desinformação promovido por Bolsonaro, certamente auxiliado pela enxurrada de fake news acerca de vacina contra o coronavírus em circulação pelas redes sociais, assemelha-se a uma versão moderna da chamada Revolta da Vacina, ocorrida em 1904, no Rio de Janeiro. Sem conhecer os benefícios da vacina anti-varíola, parte da população recusou-se a receber a imunização, protestando contra a lei que instituiu a vacinação obrigatória. Entre as notícias falsas acerca dos efeitos da vacina, boatos “alertavam” que quem se vacinava passava ter feições bovinas.
Com a desistência da obrigatoriedade da vacina pelo governo, após conflitos que deixaram pelo menos 30 mortos em duas semanas, a doença avançou entre a população. Quatro anos mais tarde, quando o Rio de Janeiro voltou a ser atingido por um violento surto de varíola, a população aderiu em massa à vacinação.
Da Redação, com informações de ‘Rede Brasil’, ‘CNN’‘, BBC’ e ‘Fiocruz’