As séries de ataques do presidente Jair Bolsonaro, em palavras e ações, contra diferentes segmentos da sociedade, dos trabalhadores aos estudantes, do meio ambiente à liberdade de expressão, devem resultar na formação de uma “frente ampla” unindo a maioria da população contra o seu governo, impondo limites à destruição de suas ações.
O paradoxo é que, enfraquecido o governo, ele pode acabar recorrendo ao uso da força, descambando para um estado de exceção. O pano de fundo é um conjunto de transformações da atividade econômica, em nível global, que pretende se ver livre de qualquer amarra ou regulação, transformando em mercadorias os serviços públicos e os recursos naturais.
Esse foi o quadro pintado em debate realizado na manhã desta quarta-feira (31) no Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé, na região central da capital paulista, com a participação do presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Iago Montalvão, o coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) João Paulo Rodrigues e do diretor-técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio.
O líder dos estudantes destacou o ato em desagravo ao jornalista Glenn Greenwald ocorrido no dia anterior na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro, como exemplo da “frente ampla” em gestação, que reuniu representantes de partidos de esquerda, mas também contou com manifestações em vídeo de apoio de figuras liberais como o jornalista Reinaldo Azevedo e do presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ). Ele vem sendo atacado pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, e também pelo próprio presidente, após o início da série de reportagens do The Intercept Brasil que vem revelando bastidores de ilegalidades cometidas pelos integrantes da Operação Lava Jato.
Setores da classe jurídica também se insurgiram após declarações caluniosas de Bolsonaro contra a memória do pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Segundo o presidente, Fernando Santa Cruz teria sido morto por uma organização de esquerda durante a ditadura, e não pelos próprios militares, conforme consta na documentação oficial. De acordo com especialistas do direito, a declaração fere o decoro presidencial e pode ser enquadrada como crime de responsabilidade, ensejando, inclusive, a possibilidade de abertura de processo de impeachment.
Future-se
Segundo Montalvão, as manifestações contra os cortes de recursos destinados às universidades e institutos federais demonstraram que educação é tema capaz de unir amplos setores da sociedade. Ele criticou também o programa Future-se, proposto pelo governo federal, que pretende ampliar a participação privada no financiamento do ensino superior público. Para o líder estudantil, a proposta representa risco até mesmo para a soberania nacional, já que as empresas poderiam passar a guiar linhas de pesquisa, se apropriando de patentes.
Escalada autoritária
Para o representante do MST, o governo Bolsonaro se comporta como um regime golpista clássico, e o seu enfraquecimento ou derrubada vai depender da conjunção de fatores externos, como a retirada de apoio de países importantes no cenário internacional, a fragmentação interna entre os grupos que conformam a aliança no poder ou, ainda, a atuação da oposição, nas ruas e no Parlamento. Aposta de Rodrigues, no momento, é fortalecer os movimentos populares para servir de contenção às ações do governo.
“Se tivermos um governo fraco, pode ser pior para os movimentos populares, porque será mais repressor e vai querer atacar com mais força”, alertou o dirigente, expondo uma das contradições do atual governo. A outra, segundo ele, é que um agravamento esperado da crise econômica se, por um lado, esvaziaria ainda mais o apoio à Bolsonaro, por outro, inibe a atuação dos trabalhadores. Com medo do desemprego, poderiam se resistir em aderir a protestos e greves.
Avanço neoliberal
Segundo o diretor-técnico do Dieese, o pano de fundo dos ataques aos direitos dos trabalhadores, representadas pelo avanço das “reformas” trabalhista e da Previdência é a mudança global nas estruturas produtivas, com o avanço da financeirização, que colocou fim ao pacto social-democrata que sustentou o Estado de bem-estar social nas décadas que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial.
“Temos hoje uma dinâmica econômica que voltou a produzir desigualdade de maneira estrutural. Seja nos EUA, no Japão, na Europa ou no Brasil. Aqui, estamos vivendo de forma intensa o desmonte estrutural do que foi o acordo social-democrata da Constituição de 1988. E esse desmonte está apenas no começo. Se não entendemos isso, não vamos entender as sucessivas derrotas que vamos sofrer nos próximos tempos, e que não serão pequenas”, afirmou Clemente.
Antes, as empresas buscavam elevar seus lucros com o aumento da produção, o que ampliava a criação de postos de trabalho, fortalecendo inclusive os sindicatos. Agora a estratégia do capitalismo financeiro é elevar ao máximo o retorno dos acionistas, no menor prazo possível. Daí a implementação de novas tecnologias que reduzem custos de produção e reduzem a necessidade de mão de obra. “As empresas investem pouco, a taxa de crescimento mundial é baixa, e a desigualdade aumenta, porque a riqueza gerada é distribuída aos acionistas no mundo todo. Os ricos ficam cada vez mais ricos, numa velocidade estúpida. A classe média fica estagnada, espremida, e os assalariados da base da pirâmide registram renda decrescente pelo emprego precário”, destacou.