No século XIX, o perfil dos principais ricos no Brasil estava associado ao tráfico negreiro. Os casos de José Francisco dos Santos (Zé Alfaiate), Joaquim Pereira Marinho e Joaquim Ferreira dos Santos exemplificavam o quanto o comércio escravista era altamente lucrativo, permitindo que figurassem na cúpula da riqueza do Brasil imperial (1822-1889).
Isso porque somente o Brasil respondeu por quase 40% do total dos 12,5 milhões de traficados da África sob a denominação de escravidão moderna. Navios de bandeira inicialmente portuguesa e, posteriormente, brasileira realizaram mais de nove mil viagens para traficar africanos entre 1530 e 1850, sendo que cerca de 50% delas foram realizadas apenas durante a primeira metade do século XIX, para trazer 2,3 milhões de escravos (47% do total de africanos trazidos se considerados os 320 anos).
O negócio financeiro obtido pelos empreendedores escravagistas foi o responsável pela formação de muitas fortunas que, após o fim do tráfico negreiro (1850), foram reinvestidas em atividades produtivas. Tanto assim que o Produto Interno Bruto por habitante, que havia crescido 0,2% como média anual entre 1820 e 1850, foi de 0,4% ao ano, em média, no período de 1850 a 1888.
No país do rentismo, os recursos disponíveis de famílias e unidades produtivas são drenados para o improdutivismo que se alimenta do endividamento generalizado. Estranhamente, num país de economia enfraquecida como a brasileira, grande parte das fortunas se descolou da natureza econômica, para expressar relações de poder político.
Neste início do século 21, o perfil dos principais ricos no Brasil se encontra associado ao rentismo. Entre os dez mais ricos do país, cinco deles estão atuando diretamente no mercado financeiro, como banqueiros ou como gestores de fundos de investimentos.
Em plena pandemia do coronavírus, mesmo quando o fluxo de riqueza nacional encolheu 4,1%, o Brasil registrou o surgimento de mais 42 novos bilionários, cujas fortunas aumentaram em 34 bilhões de dólares.
Não bastasse isso, constata-se que dos 200 maiores grupos econômicos do país agregados em quatro grandes setores, somente o segmento de finanças apresentou elevação de 27,1% no lucro líquido em 2020, enquanto o setor de serviços teve o lucro líquido negativo em 34,8%, a indústria teve um declínio de 7,8% e o comércio teve -6,8%. Com tamanha discrepância de desempenho, os bancos (setor de finanças) aumentaram a sua fatia no total do lucro líquido consolidado entre os 200 maiores grupos econômicos do país, passando de 38% para 49%.
Como os bancos não produzem riqueza, pois operam como pedágio de quem produz, aumenta a escassez dos recursos disponíveis para viabilizar o consumo e, sobretudo, o investimento. Essa distorção permite que os empreendedores do dinheiro deixem de servir à economia real para servirem a si mesmos, apropriando-se de parcelas crescentes do excedente econômico.
No país do rentismo, os recursos disponíveis de famílias e unidades produtivas são drenados para o improdutivismo que se alimenta do endividamento generalizado. Estranhamente, num país de economia enfraquecida como a brasileira, grande parte das fortunas se descolou da natureza econômica, para expressar relações de poder político.
De um lado, o poder da estrutura de competição nos mercados exercido por muito poucos (oligopólios e monopólios) termina por reduzir a eficiência econômica, conforme revela a própria concentração bancária no Brasil. De outro lado, o poder do financiamento eleitoral permite obter expressiva bancada parlamentar que impede a tributação sobre lucros e favorece as desonerações ao rentismo.
Os privilégios atuais dos empreendedores do rentismo ganham ainda maior vigor com o financiamento da mídia a garantir presença contínua como porta-vozes do dinheiro e colunistas na imprensa comercial para defender a legitimidade da riqueza rentista. É isso que permite que a riqueza continue a crescer, mesmo em situações de crise, com a queda das atividades na economia real.
Assim como o fim do tráfico negreiro desde 1850 permitiu desovar maiores recursos disponíveis para o financiamento da economia real, a asfixia do rentismo permitiria liberar a volta do desenvolvimento nacional. Para isso, uma nova maioria política seria necessária, pois do contrário, dificilmente será possível encontrar outras atividades econômicas tão lucrativas como o setor de finanças.
Marcio Pochmann é economista e presidente do Instituto Lula.