Samuel Huntington (1927-2008) foi um intelectual estadunidense de direita, autor de O Choque de Civilizações (Ed. Objetiva): ensaio que teorizou a fase da política internacional dos Estados Unidos, após a Guerra Fria. “Minha hipótese é que a fonte fundamental do conflito neste novo mundo não será primordialmente ideológica ou econômica. As grandes divisões entre a humanidade e a fonte principal do conflito serão culturais. Estados-nação continuarão a ser os atores mais poderosos nas questões mundiais, mas os principais conflitos da política global ocorrerão entre nações e grupos de diferentes civilizações. O choque de civilizações dominará a política global. As rupturas entre as civilizações serão as frentes de batalha do futuro”. Soou como uma declaração.
No espectro que Huntington reputava de “sete ou oito civilizações”, o que não fica claro, duas são destacadas: o Islã e o Ocidente. Esse é o primeiro problema, considerar homogêneas as culturas existentes em cada entidade civilizacional. É muita pretensão, critica Edward W. Said em um texto intituladoO Choque da Ignorância, traduzido por Emir Sader e incluído na coletânea Política e Cultura (Ed. Boitempo). Nem o Ocidente, nem o Islã estão fechados em si mesmos. Possuem “uma história de trocas, fertilização mútua e compartilhamento”. Trocar a realidade pela ficção é um erro.
Com efeito, “eles” tinham o terrorista muçulmano Osama bin Laden. “Nós”, os discípulos do reverendo Jim Jones na Guiana; o terrorista cristão Anders Behring Breivik que matou dezenas de pessoas e feriu outras tantas na Noruega; o maluco Mark David Chapman que assassinou John Lennon defronte o prédio em que o ex-beatle morava em Nova York… Na verdade, essas contas macabras podem ser multiplicadas em qualquer direção. Não provam nada, exceto a irracionalidade dessa balança para legitimar governos.
Não obstante, os ataques terroristas ao World Trade Center e ao Pentágono, em 11 de setembro de 2001, planejados por “militantes enlouquecidos” e “patologicamente motivados”, foram apresentados à opinião pública como uma prova da correção da tese huntingtoniana. Alguns chefes de Estado repercutiram a suposta correspondência entre a abstrata teoria e o criminoso atentado, com citações do livro tidas como visionárias. O bufão Berlusconi chegou a dizer que nós temos Mozart e eles não.
É dever ético de qualquer cidadão esclarecido tratar o complexo, sem cair na tentação das simplicações grosseiras. Deveria ser um imperativo também para os meios de comunicação, para que não disseminassem e fortalecessem preconceitos. “Quão inadequados são os rótulos, as generalizações e as asserções culturais”, lamenta Said.
Reduzir o construto conceitual do Islã a uma caricatura totalitária não é sinal de inteligência. No interior do próprio islamismo pairam contrariedades em relação à direita religiosa e à tirania de governantes, aos moldes do Talibã, que querem regulamentar o comportamento pessoal, promovendo “uma ordem islâmica reduzida a um código penal, despojada de seu humanismo, estética, buscas intelectuais e devoção espiritual… O fenômeno distorce a religião, degrada a tradição e deturpa o processo político onde quer que ele ocorra”. Isso revela uma instrumentalização política, igual a que se observa no Ocidente com o fundamentalismo católico ou evangélico (Damares, presente!).
A demonização do Islã no Ocidente, em meio à crise econômica geralnão surpreende, embora sejainaceitável. Os bolsões islâmicos se alastraram já pela França, Itália, Alemanha, Espanha, Grã-Bretanha e Estados Unidos. Talvez remexendo no medo atávico das conquistas árabe-islâmicas a partir do século VII. Sem mencionar o papel que o judaísmo e o Estado de Israel podem desempenhar na propagação dos temores. Temas que precisam de uma reflexão não submetida a razões de ordem tática dos poderes.
Donald Trump, na Casa Branca, foi mais pragmático, sonhou com um muro na fronteira com o México ocidentalista. Escolheu a China como “civilização” a combater no plano industrial / tecnológico e comercial e, Bolsonaro, como bobo da corte ao transformar o Brasil numa colônia para espoliar a Petrobrás, com ajuda da operação Lava Jato, e ocupar o território da base de Alcântara para lançar foguetes e satélites.
Felizmente no meio do caminho tem Lula da Silva que, em 15 de novembro do corrente no Parlamento Europeu mostrou a falta que faz um verdadeiro estadista em tempos tão sombrios para pôr os pingos no “i” e jogar no esquecimento as profecias de ocasião e o habitus colonizado de vira-lata. Transcrevo os primeiros e os últimos parágrafos da peça de oratória que foi aplaudida de pé no Velho Continente.
Com a palavra, Lula: “Eu quero começar falando não da América Latina, nem da União Europeia, nem de algum país, continente ou bloco econômico em particular, e sim do vasto mundo em que vivemos todos nós: latino-americanos, europeus, africanos, asiáticos, seres humanos das mais diferentes origens.
“Vivemos em um planeta que tenta a todo momento nos alertar de que precisamos de novas atitudes e de uns dos outros para sobreviver. Que sozinhos estamos vulneráveis às tragédias ambientais, sanitárias e econômicas. Mas que juntos somos capazes de construir um mundo melhor para todos nós”.
Encerrou o discurso, com uma profissão de fé no futuro: “Acreditamos que somos capazes de construir no mundo uma economia justa, movida a energia limpa, sem a destruição do meio ambiente e livre da exploração desumana da força de trabalho.
“Acreditamos que outro Brasil é possível e outro mundo é possível – porque num passado recente fomos capazes de construí-lo. Podemos ser felizes juntos, e seremos.”
Said, por sua vez, concluiu assim o seu libelo contra a ignorância metida à besta: “A tese do ‘choque de civilizações’ é uma farsa como a ‘guerra dos mundos’, que serve mais para reforçar o auto-orgulho defensivo que para uma compreensão crítica da desconcertante interdependência de nosso tempo”.
A mídia brasileira não cobriu. Está em greve de notícias.
Al Nihaya / Fim.
Luiz Marques e docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul no Governo Olívio Dutra.