Nos dias de hoje, o deslocamento do centro dinâmico do mundo do Ocidente (EUA) para o Oriente (China) se constitui no evento econômico mais importante ocorrido desde o final do século 18. Naquela época, a primeira Revolução Industrial e Tecnológica (mecanização têxtil e motor a vapor) abriria caminho para que o antigo centro avançado do mundo fosse deslocado da antiga Eurásia para a Europa, tendo o Império Britânico assumido a liderança da economia e dominado um quarto da população e território do planeta.
Quase 15 décadas depois, a hegemonia inglesa deu lugar ao mais grave conflito populacional expresso pela realização de duas grandes guerras mundiais que consolidaram os EUA na condição de centro dinâmico da economia global. Assim, os EUA que representavam em 1820 bem menos de 5% do PIB mundial, assumiram a responsabilidade por um quinto da economia mundial, cem anos depois.
Após alcançar o auge econômico no segundo pós-guerra, respondendo por quase um terço do PIB mundial na década de 1950, os EUA iniciaram a sua fase de relativo declínio. Em 2020, por exemplo, os EUA ainda seguiam sendo a economia mais importante do mundo, embora representassem o equivalente a um quinto do PIB global, posição próxima da verificada nos anos de 1920.
Diante disso, o receituário keynesiano de guerra adotado com sucesso para debelar a Grande Depressão de 1929 terminou sendo substituído pelo neoliberalismo a partir dos anos de 1980, na crença de que a globalização conduzida por grandes corporações transnacionais pudesse interromper a decadência estadunidense. E isso se transcorreu entre os anos de 1981 e 2008, quando a participação dos EUA na economia mundial deixou de retroceder em termos relativos para voltar a aumentar levemente de menos de 21% para 24% do PIB global.
Com a crise financeira de 2007-2009, o receituário neoliberal começou a girar em falso. Tanto assim que o governo Bush Filho (2001-2009) abdicou do dogmatismo neoliberal das finanças públicas saudáveis para adotar gigantescas emissões monetárias da recompra de títulos públicos. Procedimento que não foi rejeitado pelo governo Obama (2009-2017), que abusou da política monetária moderna na tentativa de recuperar o espírito empreendedor estadunidense (Yes, We Can).
A ascensão de Trump (2017-2021), com os lemas Make America Great Again e America First, impulsionou mudanças parciais no receituário econômico neoliberal menos ortodoxo adotado por governos nos EUA desde a crise de 2008. Em vez da ampla liquidez voltada quase que exclusivamente às grandes corporações empresariais, Trump buscou, sem sucesso como Obama, a reindustrialização, apenas diferenciado na ajuda em grande escala, mesmo que pontual, aos pobres durante a pandemia da Covid-19, em 2020.
Tudo isso, contudo, não se mostrou suficiente para alterar a rota econômica declinante, acompanhada por seus gigantescos efeitos negativos para a sociedade e as disputas comerciais, tecnológicas e militares. A China seguiu inflexível em sua marcha de protagonismo econômico, cujos resultados parecem ser inegáveis em termos da nova reconfiguração mundial.
A partir do curso da recentralização eurasiana, evidenciada pelo propósito da Nova Rota da Seda, o “Plano Marshall” muitas vezes superior aos dos EUA do segundo pós-guerra mundial, a China desbanca a liderança estadunidense. Nesse contexto, o presidente Biden, que adotou o lema No Malarkey! e tem adotado medidas econômicas iniciais até certo ponto surpreendentes nesse início de 2021, apontaria o abandono, de fato, do receituário neoliberal, capaz de interromper o deslocamento do centro dinâmico do Ocidente para o Oriente?
Ainda é muito cedo para respostas definitivas. Nos seus primeiros cem dias de governo, a ousada retórica e as medidas econômicas perseguidas por Biden podem se travestir em marcas permanentes de todo o seu governo. Podem, inclusive, romper com o receituário neoliberal, algo que já se elucidava pontualmente desde o final do governo Bush Filho, com o Estado assumindo o controle das instituições financeiras imobiliárias (Fannie Mae e Freddie Mac), resgatando empresas privadas (AIG) e liberando 700 bilhões de dólares para recompor bancos privados insolventes.
No Governo Obama, o Banco Central (FED) comprou 4,5 trilhões de dólares em títulos de dívidas das empresas com intuito de reativar a economia através da injeção de dinheiro. Além disso, com a Lei de Recuperação, mais de 800 bilhões de dólares foram utilizados para financiar programas de resgate e investimentos em infraestrutura, educação, saúde e energia renovável.
Com todo o estímulo monetário e fiscal, o déficit orçamentário federal de quase 12% do PIB em 2009 foi contraído para 2,5% do PIB em 2015, assim como o desemprego retornou ao patamar pré-crise de 2008. Apesar disso, a economia estadunidense não havia conseguido interromper a queda relativa em sua participação na economia mundial.
O Plano Biden parece buscar, até o momento, estancar o perigo de colapso apresentado pela pandemia da Covid-19 herdada do governo Trump. Ao mesmo tempo, lança luzes ao que poderia ser a economia estadunidense no ambiente pós-pandêmico, com significativos investimentos (The American Rescue Plan Act de março, no valor de US$ 1,9 trilhão, American Jobs Plan de US$ 2,3 trilhões e In-home care de US$ 400 bilhões) com recursos públicos direcionados à reativação econômica.
Tudo isso na expectativa de que o desenvolvimento do país possa voltar a incorporar a produção, que segue dominada pela financeirização neoliberal. O verdadeiro dilema estadunidense atual.
Marcio Pochmann é economista, presidente do Instituto Lula, professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais da UNICAMP, ex-presidente do IPEA e autor de vários livros e artigos publicados sobre economia social, trabalho e emprego
Artigo originalmente publicado no site Terapia Política