Ontem, 27/12, o presidente do Brasil disse que não vacinaria sua filha de 11 anos. Ele não pode fazer isso. A Constituição da República prevê, no art. 227, que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança (ao adolescente e ao jovem), com absoluta prioridade, o direito à saúde, entre outros direitos, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), por sua vez, estipula no art. 14, §1 º, que “é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”. Ou seja, para as crianças – a lei considera criança a pessoa até doze anos de idade incompletos – a vacinação é obrigatória em casos recomendados pelas autoridades sanitárias.
Como se sabe, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou, no último 16/12, o uso da vacina Covid-19 Comirnaty, fabricada pela Pfizer, para crianças de 5 a 11 anos, decisão que foi precedida de manifestação favorável de autoridades médicas e científicas, a exemplo das sociedades brasileiras de Imunizações (SBIm), Pediatria (SBP) e Infectologia (SBI). Apesar disso, o Ministério da Saúde segue postergando a imunização, com especulações sobre imposição de exigência de receita médica para a vacina e condicionamento à autorização em consulta pública. O ímpeto negacionista do governo chega ao ápice, agora, com a comunicação do presidente de que não vacinará a filha criança.
Não é possível que as autoridades competentes do país se acomodem diante de tamanho absurdo. O recado do presidente não pode ser interpretado tão-somente como a manifestação individual de um pai negligente com a saúde de sua filha, fato que, por si só, justificaria responsabilização administrativa e judicial, consoante previsto em lei. A mensagem visa tumultuar a sociedade. Procura semear confusão e medo para potencializar uma onda social por uma faculdade inexistente no Brasil de desobrigação dos pais de vacinarem os filhos, como se fosse possível atribuir-lhes um poder familiar superior, hipertrofiado, para renunciar ao direito fundamental das crianças de serem blindadas contra doenças e riscos evitáveis à vida. Ação 100% anticivilizatória. Ameaça concreta à proteção integral da criança assegurada pela Constituição, sem falar dos prejuízos para a saúde da coletividade.
Já faz um tempo que a Fiocruz vem alertando para a queda do ritmo de procura da vacina contra a Covid-19. Com relação à imunização infantil em geral, o Brasil se tornou deficitário nas metas de cobertura vacinal, algo não visto há 20 anos. Hoje mesmo jornais estampam que o Programa Nacional de Imunizações (PNI) está sem coordenador desde julho. Não sendo demasiado supor que existe, em curso, um plano arquitetado para boicotar as estratégias de vacinação no país, a pergunta que resta a ser feita é: até quando será tolerada essa desumanidade?
Marcelo Uchôa, Advogado e Professor Doutor de Direito da Universidade de Fortaleza. Membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) – Núcleo Ceará e grupo Prerrogativas. Twitter/Instagram: @MarceloUchoa_