O sociólogo e jurista português Boaventura de Sousa Santos, das universidades de Coimbra (Portugal), de Wisconsin-Madison e de Warwick (EUA), concedeu entrevista ao Brasil de Fato e a Rede Soberania. A conversa divulgada nesta sexta-feira (21) mostra as preocupações do intelectual com a conjuntura política brasileira a partir das revelações do site The Intercept Brasil, que mostram conluio entre o ex-juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol para condenação do ex-presidente Lula.
Leia trechos da entrevista
Brasil de Fato: Como o senhor avalia a situação brasileira com as revelações que estão vindo à tona? Inclusive, hoje (19) o juiz Sérgio Moro está no Senado prestando esclarecimentos.
Boaventura de Sousa Santos: É uma situação muito grave, obviamente. Os dados que têm sido dados pelo Intercept configuram uma manipulação grosseira. Politicamente relacionada com o sistema judiciário, que deve ser um fator de segurança jurídica e que devido a essa manipulação se transforma em um fato de insegurança jurídica, insegurança e incerteza da situação que nos encontramos nesse momento no Brasil. Eu penso que o princípio do juiz imparcial é absolutamente fundamental para que a ordem jurídica possa funcionar.
A ordem jurídica tal e qual a democracia funciona, na base de que os processos tem que ser certos para que os resultados sejam incertos, isto é, os processuais tem que ser bem cumpridos tal e qual também as regras eleitorais, os processos eleitorais tem que ser impecáveis, e não manipulados para que o resultado seja incerto. O réu pode ser condenado, pode ser absolvido, o candidato A pode ganhar, o candidato B pode ganhar, não se sabe.
O que nós estamos assistindo no Brasil, é uma lógica autoritária, em que os fins justificam os meios e, portanto, estamos assistindo a uma situação em que os processos são incertos porque estão sendo manipulados, ou seja, processo civil (processo criminal, nesse caso) para ter resultados certos com a condenação de alguns e provavelmente a absolvição de outros. As últimas revelações mostram que há uma intenção de não tocar, por exemplo, no Fernando Henrique Cardoso.
Isso é uma seleção grosseira do que pode ser uma luta para realmente prestigiar a ordem jurídica. Eu penso que é de tal maneira grave, assumo hoje. Eu tenho dupla formação – jurídica e sociológica – e o movimento para mim, há muito tempo, não era nada surpresa.
A condenação ilícita e ilegal do presidente Lula, não só por vários atropelos que eram conhecidos como condições coercitivas, grampeamento de discussões e vazamento dele com a presidenta Dilma para a imprensa, coisas que nós já vínhamos vendo, e a leitura da sentença em si mesma que configurava obviamente uma prova muito frágil para que ele pudesse ter sido condenado, e era claro que ele estava a ser condenado fundamentalmente para ser retirado do processo político. E depois vai obviamente se ver que era o objetivo principal por todas as razões, e até pelo juiz Moro acabando nomeado um super ministro do presidente Bolsonaro.
Portanto, isso significa que nós sabíamos, só não sabíamos com os detalhes e com a gravidade que está a assumir. Nesse momento, penso que a tarefa fundamental dos brasileiros e brasileiras que querem defender a democracia é realmente colaborar para dar de novo credibilidade ao sistema judiciário.
Eu trabalho muito com o sistema judiciário e penso que ele está em uma crise de credibilidade enorme, e essa crise é tanto maior quanto algumas das autoridades, professores. Inclusive, tenho visto recentemente na televisão, tem vindo assumir uma atitude muito ambígua, por vezes extremamente problemática do ponto de vista jurídico e político que vai no sentido de que para manter a imagem do judiciário o melhor é deixar as coisas como estão. É não por em causa as condenações, porque então será anarquia, então as pessoas veem que afinal o juiz condena, mas depois tem que absolver.
Bem, eu penso que vindo de professores de direito, por exemplo, o professor José Eduardo Farias, que é uma pessoa que muito estimo como constitucionalista, e de quem fui colega e amigo durante muitos anos. Eu acho que é a configuração de um ambiente intelectual que realmente tenta cobrir uma grande injustiça e uma situação de anemia que é basicamente o que está em causa, com outra anemia, isso é, cobre-se um erro com outro erro.
BdF: Parece que o mundo todo está enxergando essa situação e só aqui no Brasil é que não conseguimos, de certa forma, que o povo veja isso. Parece que há uma blindagem muito forte, que a imprensa contribui para que não se veja o que realmente está acontecendo. Mesmo agora, com todas essas revelações que estão vindo à tona pelo Intercept, a imprensa continua justificando e tentando dizer que não são tão graves essas denúncias.
Boaventura: Sem dúvida. Aliás, é evidente que toda essa montagem – porque trata-se de uma montagem política, não tem outro nome – não podia existir sem a colaboração da imprensa e dos meios de comunicação, das mídias oligopólicas. Obviamente, a TV Globo contribuiu para isso claramente. Penso que há revelações a fazer que mostram ainda uma promiscuidade maior entre os magistrados e a rede Globo, e, portanto, com todas as mídias que, de alguma maneira, colaboraram inclusive no fornecimento, eventualmente, de provas ilícitas.
Houve, realmente, uma política de encobrimento total, e agora de branqueamento, digamos assim, do que está acontecendo. Vejo nos editoriais de todos os jornais uma tentativa de minimizar e dizer que tudo se manteve dentro de uma certa normalidade e que o juiz Moro continua a fazer coisas muito certeiras, que é o título do editorial, por exemplo, de um dos jornais, portanto, ele continua a ser um bom ministro, tanto que ele foi condecorado depois do que se passou, e os militares têm vindo apoiá-lo muito fortemente.
Foi por isso que os brasileiros não se deram conta enquanto o mundo internacional via a grande manipulação, e acho que o ex-presidente Lula ganhou já a luta política em relação ao Moro no plano internacional; eu acho que se o ex-presidente Lula saísse da prisão agora e pudesse fazer conferências no mundo inteiro, as salas estariam cheias, a sua credibilidade seria enorme, e eu penso que ele seria, nesse momento, o melhor embaixador do Brasil para restabelecer a credibilidade desse país que de uma década para outra passa de um bom exemplo, de um país a crescer, a criar coesão social e a se desenvolver com uma certa autonomia no mundo internacional, como a quinta ou sexta potência no mundo, para de repente um país que é um contra-exemplo daquilo que se deve fazer a democracia, que é uma caricatura tropical do Trump e a que está a ser despromovido para a periferia do sistema.
Ou seja, para deixar de ser um país de desenvolvimento intermediário e passar a ser um país de nível periférico, de desenvolvimento muito subdesenvolvido. O ataque à educação, à ciência, é típico dessas situações porque só os países de desenvolvimento intermediário é que precisam de um bom sistema de ciência, para poder produzir, competir no mercado internacional.
Os países periféricos menos desenvolvidos não têm possibilidades, e nem podem desenvolver um sistema de ciência, compram a ciência daqueles que produzem fora, a partir das patentes, das aplicações e nada mais do que isso. Ora, o Brasil tem potencial científico instalado muito grande. Então, estamos assistindo a um processo de despromoção do Brasil, e isso é uma montagem de que o Sérgio Moro é realmente a figura angular e é por isso que ele está sendo muito protegido. Ele é o candidato dos Estados Unidos, um homem que foi treinado lá, que recebeu dados privilegiados, recebeu instruções exatamente para essa inovação deles, mas que vem aplicada aqui sem nenhuma regulação ao contrário dos EUA, que é a delação premiada.
O ministro Sérgio Moro foi duas vezes a Portugal, em dois meses, defender a delação premiada, e foi muito mal recebido em Portugal. A Ministra da Justiça de Portugal disse que o país era um Estado de direito e como Estado de direito não podia aceitar delação premiada. Ele não recebeu os aplausos que esperava, foi, aliás, muito contestado, e com protestos contra ele. Portanto, isso é uma situação de uma montagem que excede muito o Brasil, excede toda uma articulação internacional que está a exigir um alinhamento total do Brasil com os Estados Unidos.
Portanto, os brasileiros tiveram que ser imunizados, isolados de tudo isso através de uma imprensa que não quis que a população soubesse realmente da realidade, que no estrangeiro estava sendo conhecida, mas como os brasileiros não só dependem das mídias oligopólicas, porque não se fez nenhuma reforma política das mídias como se podia ter feito a uma certa altura, como por outro lado 120 milhões de brasileiros têm como única fonte de informação o WhatsApp e confiam fundamentalmente em duas instituições que não são democráticas: as famílias e as Igrejas. Nessas condições, é muito difícil furar o bloqueio.
Leia a entrevista na íntegra no Brasil de Fato