O filósofo, escritor, professor e teólogo Leonardo Boff, pseudônimo de Leonardo Genésio Darci Boff, abriu o último debate da Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento do PT (SMAD) e Fundação Perseu Abramo (FPA) ressaltando a importância de uma aliança global e com a Terra para salvar a destruição da biodiversidade.
“É inadiável “fazer uma aliança global uns com os outros e com a Terra ou sucumbir à extinção e destruição da biodiversidade. Estamos no mesmo barco. Ou nos salvamos todos ou ninguém se salva.”
Alinhado com o Papa Francisco, o Antropoceno / Necroceno indica que a grande ameaça ao planeta é do ser humano. Para ele, a absoluta agressividade do processo industrialista levou à grande chance de destruição. “Estamos na terceira guerra mundial”.
“A transição ecológica, a luta pela igualdade social, pela paz e por Saúde para todos são elementos interdependentes e devem ensejar um novo projeto de civilização e novos valores do ser humano. E o planeta atualmente passa por desastres em todos esses aspectos. Boff lembrou Noam Chomsky, que disse: “Há suficientes loucos na Rússia e no pentágono para iniciar uma autodestruição por armas químicas, nucleares e biológicas.”
Boff ressalta que a ciência e tecnologia trouxe muitas vantagens, mas também muitos riscos. Ele explica que o ideal do crescimento ilimitado na economia é um pressuposto falso e mentiroso, de que a Terra tem bens, serviços e recursos ilimitados que permitiriam um crescimento ilimitado. O uso de todos os recursos já desencadeou uma emergência climática e uma série de desastres para os mais pobres, segundo Boff.
Paradigma
Esse paradigma, conforme o filósofo, preside todas as sociedades mundiais, numa Terra fragilizada. Para o maior divulgador da Teologia da Libertação. “A alternativa à conquista e à dominação é o cuidado, a essencial do ser humano é o cuidado, não a inteligência ou a força. Sem cuidado nós não sobreviveríamos, cuidar especialmente dos milhões que estão passando fome, cuidar da Natureza que está degradada. O aquecimento global e as ameaças dos eventos extremos indicam o perigo, e temos apenas 8 anos para reduzir em 40% da emissão de gases do efeito estufa, pois caso contrário o aumento superior a 1.5 grau na média implicará a extinção de muitas. É urgente a situação, todas as ciências devem ser ecologizadas.”
Sobre a contribuição das religiões à preservação da vida, o professor Boff afirma que “Apesar de grande parte das religiões ser afetada pelo fundamentalismo, de afirmar que apenas uma doutrina é verdadeira e as demais devem ser eliminadas, há o remédio, com o cuidado, o amor, a proteção à vida. Impõe-se uma grande revolução espiritual, mas espiritualidade é a dimensão do profundo, as grandes questões (de onde venho, para onde vou quem criou a extraordinária beleza do céu e da Terra), essa espiritual vida de amor, comunhão é uma fonte que se canaliza segundo cada cultura. As religiões são canalizações dessa fonte original. Toda nossa cultura está montada em produção de bens materiais, mas o que mais vale é o amor, a solidariedade, a felicidade, o cuidado com os filhos.”
O teólogo brasileiro, mais conhecido no mundo, realiza uma síntese da luta pela justiça social com a luta pela sobrevivência da espécie, e afirma que apenas com uma será possível encontrar a outra. Ele defende uma “transição de uma cultura material, industrialista, egoísta para uma civilização humana e espiritual. Vejam a lição do Coronavírus. O capitalismo coloca a competição, o assalto á natureza, o mercado acima da sociedade. Em vez disso, a nossa espécie poderá sobreviver apenas se priorizar a cooperação, a interdependência, a solidariedade, a proteção, a sociedade e as pessoas no centro das atenções e não o deus mercado”.
Civilização bioconcentrada
Outro conceito defendido por Boff foi a “Civilização biocentrada”, onde a vida em sua grande diversidade esteja no centro. A vida visível é 5% do total, e 95% dos seres vivos estão invisíveis, logo a Terra é um super organismo vivo, que se regula sistemicamente, nos âmbitos químicos, físicos. Esse superorganismo ficou claro no grande testemunho dos astronautas: não há diferença ou distinção entre a Humanidade e a Terra, os seres humanos são a Terra. Somos Terra.
Muito hábil com metáforas que explicam suas posições, Boff fala em uma contraposição, “o paradigma do punho cerrado para dominar versus o paradigma da mão estendida, do cuidado. Caso não sigamos o segundo, pode-se realizar o que Bauman também defendei, que “ou a humanidade dar-se a mão uns aos outros ou se somarão ao cortejo dos que rumam para suas sepulturas.” Estamos num caminho sem retorno, para alguns pessimistas, e o próximo governo deve colocar como eixo central resgatar tudo o que foi destruído pelo governo Bolsonaro, e reinventar instâncias e organismos à altura da humanidade. Temos que mudar.
Boff cita ainda o cientista Carlos Nobres, participante do primeiro debate da série organizada pela Smad a partir de 10 de março, e faz coro com a proposta de que “o desafio ao presidente Lula deve ser aproveitar a biodiversidade para se tornar uma grande potência ambiental. Não é somente falar sobre desenvolvimento sustentável, mas de um modo sustentável de vida, para toda a Terra e para os nossos filhos e nossos netos. Hoje temos duas injustiças, uma ecológica e outra social. Deus criou tudo por amor, pois ele é apaixonado e amante da vida e não vai permitir que desapareçamos tão rapidamente Vamos dar um salto em nossa consciência e usar Ciência”.
Leonardo Boff ainda entende que há tempo para mudanças, embora os alertas sejam muito sérios, e para isso devemos fazer uma “revolução espiritual” rumo a esse novo paradigma da cooperação e da civilização biocentrada, e devemos ter o cuidado da casa comum: sigamos cantando, que as dificuldades com o planeta não podem destruir a esperança.
Refundação social
A historiadora, teóloga protestante, idealizadora e coordenadora do iRuah — coletivo de acolhimento e acompanhamento para meninas e mulheres vítimas de violências, que atua também com justiça ambiental, Viviane Costa, conversou nesse mesmo sentido sobre a necessidade da refundação social, econômica e ambiental da civilização e uma nova percepção da vida, uma nova espiritualidade no sentido mais amplo que apenas religioso.
Para ela “o espiritual é o todo, é o humano, tudo afeta tudo na espiritualidade. “O que é afetado quando a Terra é afetada? Falo em lugar de pastoreio na Baixada Fluminense. Se não fizermos uma grande virada nos próximos 8 anos, os pobres serão os mais afetados. Hoje existem redes de afeto evangélicas, que tem sido meu tema de estudo nos últimos anos e parte de nossa atuação social, e o caminho da sensibilização necessária e urgente passa por valores, desejos e princípios comuns. Lugares evangelizados podem encontrar um outro caminho que é a fé cristã. As redes de afeto atuam nos lugares de desamparo e precisamos disputar a mensagem nessas redes de afeto.”
Viviane reflete sobre o que dizer para as pessoas afetadas por desastres ambientais e passam por grandes privações materiais, enquanto outras pessoas presentes no mesmo território propagam uma negação científica, mas conseguem responder à fome que invade o cotidiano.
“O que a redes de afeto provocam nos espaços? Socorro, alimentos, colchões, mas também com falta de informação ou informações que prejudicam a conscientização.”
Sua reflexão que propõe uma mudança no ethos mundial e no ethos das redes de solidariedade afetivas e religiosas vai no sentido de “Como chegamos nesse ponto? Quando deixamos de acreditar que tudo o que Deus criou foi bom? Para as pessoas que passam por privações, vale o que se têm e o que se come. Como podemos fazer para que o novo Ethos seja possível? É necessária uma nova sensibilidade, que deve ser provocada, uma sensibilização que deve ocorrer, e pode ocorrer pela dor, pelas tragedias climáticas. A sensibilização a partir da ameaça talvez funcione.” Viviane Costa argumenta que a sensibilização que gere conversão e que mova as pessoas que sofrem com as tragédias climáticas é imprescindível, numa sensibilidade das urgências da vida e a partir do texto bíblico.
Complementando essa elaboração, Boff vaticina que “o capitalismo é um modo de produção, se concentrando na produção de meios, sem se preocupar com os fins. Não traz felicidade, com a acumulação por ela mesma, dinheiro por ele mesmo. O capitalismo transformou uma “economia de mercado” em uma “sociedade de mercado”.
“As coisas mais sagradas se tornam comercializáveis, com um preço. Estamos assistindo à máxima degradação nas relações humanas. Capitalismo pode acumular em poucas famílias uma grande quantidade de riqueza, ao lado de milhões que nada tem. Sistema cruel e sem piedade. Logo, não terá futuro. Sistema assassino, assassina vidas da natureza e vidas humanas.”
Para ambos, é fundamental conscientizar as pessoas sobre os problemas da emergência climáticas, com eventos climáticos extremos. Incêndios, enchentes, secas, neve em regiões nunca afetadas, tufões, sinais agravados pelo fato da Terra ter perdido o equilíbrio dela. Há na humanidade uma grande insuficiência de percepção da situação de destruição ambiental e deve-se trabalhar para usar os desastres para podem sensibilizar as pessoas.
Fim de um tipo de globalização
O debate apontou que vivemos um fim de um tipo de globalização, que esgotou suas possibilidades, pois ocupamos 83% do planeta, sempre destruindo, e a consequência é a sobrecarga da Terra. Todo ano a ONU publica estudos que atestam essa sobrecarga, e a reação da Terra com eventos extremos, doenças novas, desastres ilustram essa situação.
Para Boff, “A ordem que estávamos vivendo está chegando ao fim, e tudo está se desfazendo mundialmente. Precisamos de uma governança global, plural, de mulheres e homens de vários países, preocupado com as urgências climáticas, sociais, da Saúde e da Paz.
Viviane reflete também sobre o Neopentecostalismo e o “evangelho da prosperidade”, com muitos falando de bens materiais e não do novo testamento. Ela se pergunta “Como atrair os cristãos com os valores da solidariedade, do amor, da bondade? Apresentar a mensagem do Cristo histórico. É importante interagir com os que não são vistos na sociedade, mas vão ao templo e ganham um sentido de humanidade, um fenômeno de consciência e mútua ajuda.
Esse fenômeno tem um valor social, melhora sua vida, deixa de beber e bater na esposa.” Para a pastora Viviane, devemos estar essas “Redes de afeto dinâmicas e comunitárias, com um redirecionamento do campo religioso brasileiro. Quem são os pobres? A maioria dos evangélicos são pobres, pretos e mulheres. Quando se fala de família, de economia, de educação, de segurança sempre se fala com a mulher. Nas periferias há um processo de neopentecostalização: os afetados pela experiência evangélica, as redes de afeto. O vizinho é o pastor, está integrado à comunidade e ao território.”
Ainda segunda a professora, “os neopentecostais nas periferias atravessam discursos e forma gramáticas em lugares de periferia, e as redes de afeto de solidariedade, formada pelas pessoas da comunidade tem crescido em potência. Cabe aos que defendem uma justiça social e ambiental promover uma revolução do afeto e da espiritualidade, e redefinir a sociedade. O quanto essas redes são libertadoras? Mas são libertadoras para quem? O neoliberalismo e o discurso religioso se retroalimentam e se reforçam em muitas dessas redes, e quem responde a essas urgências são os setores que ficam mais ricos, os opressores.” Deve-se procurar fortalecer a experiência de dignidade, de vida, de fé, aquecida por afeto, ouvir mais as vozes, para depois dialogar.
Resgate da sensibilização e afeto
Boff concordou com Viviane, no sentido de resgatar a sensibilização e o afeto.
“Saber acolher as pessoas. Mas precisamos estender esse afeto a toda a natureza, todos somos irmãos e irmãs, pelo código genético. Sentir-se parte da natureza. Esse afeto nasce do coração, da empatia, estendendo à criação. Temos aí mais motivos e energias para nos engajarmos na preservação da vida que herdamos. Viviane sintetizou o debate argumentando que “acreditando mais nas micro políticas e valorizando as macro políticas poderemos transformar a sociedade e a espiritualidade. Territorialmente e à distância. Sensibilização para compreender que tudo é parte de nós. Tudo que Deus fez é bom, e por isso devemos nos afastar da morte e da destruição, pelo afeto e pelas transformações.”
O debate foi mediado pela Smad e pelo Setorial de Diálogo Interreligioso, inaugurando uma parceria muito produtiva entre as secretarias e setoriais para debater o meio ambiente. Quem ainda não assistiu ao debate, pode conferir no link abaixo.
Da Redação