O Chile foi o primeiro país da América Latina a fazer uma reforma da Previdência que provocou a mudança de um regime solidário para outro de capitalização, em que o indivíduo é responsável pela sua própria aposentadoria e não conta com aportes de seus empregadores ou do governo. Esse sistema, implementado lá em 1981, agora é defendido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, ainda que ele não tenha especificado como seria implementado, caso a reforma da Previdência seja aprovada — precisaria ser regulamentado posteriormente por meio de uma lei complementar. Para entender o que ocorreu no Chile após a implementação da capitalização, o Sul21 conversou com Andras Uthoff, economista e professor da Faculdade de Economia e Negócios da Universidade do Chile, que esteve em Porto Alegre na última semana para participar de um seminário sobre o tema.
Uthoff participou de duas comissões criadas, em 2006 e 2015, pela ex-presidente chilena Michelle Bachelet para revisar o sistema previdenciário chileno. Ele destaca que as comissões foram estabelecidas porque, com as primeiras pessoas se aposentando pelas novas regras a partir dos anos 2000, percebeu-se que as aposentadorias estavam despencando para valores equivalentes a até um quinto do salário da ativa dos trabalhadores chilenos e que uma grande massa de pessoas estava sendo excluída do sistema previdenciário porque era incapaz de contribuir com regularidade.
“Sob a lógica de que o trabalhador deveria ter mobilidade de um cargo para outro e que, com uma conta individual, poderia mudar de uma ocupação para outra sem deixar de poupar, o que se produziu, então, é a transformação do trabalhador com direito a aposentadoria em um consumidor de serviços financeiros. E aqueles que não tinham nenhuma capacidade de poupança, não tinham um emprego formal, foram ficando excluídos do sistema. Levou quase 25 anos até que o governo da Dra. Bachelet fizesse uma avaliação do sistema e ali se percebeu, muito seriamente, que o sistema excluía a metade da população idosa, que não ia ter nenhuma aposentadoria”, diz o professor.
Na conversa a seguir, Uthoff explica como o sistema foi criado, apresenta dados que apontam que as promessas feitas pelo governo chileno quando da implementação da capitalização não foram cumpridas e diz o que o país já fez e está fazendo para melhorar a aposentadoria dos seus trabalhadores. Confira a íntegra a seguir.
Sul21 – Como foi o processo de implementação do sistema de capitalização no Chile? O que tinha antes? O que aconteceu com os trabalhadores que estavam na ativa?
Andras Uthoff: Efetivamente, a reforma da capitalização individual foi feita no ano de 1981 sob o regime militar de Pinochet. O sistema de repartição vinha sendo questionado, mas basicamente ideologicamente, por temas associados à demografia, ao mercado de trabalho, aos déficits fiscais, uma pressão muito parecida ao debate que existe no Brasil, e da necessidade de uma reforma. No entanto, não havia consciência de que tipo de reforma. Foi criado o Instituto de Normalización Previsional, que homologou todos os regimes sob uma mesma regra de contribuições e benefícios.
O que veio a ser a reforma de 1981: uma vez que os Chicago Boys convenceram Pinochet de que precisava reformar o sistema, transformaram a parte contributiva do sistema de pensões em um mercado obrigatório de poupança individual. Sob a lógica de que o trabalhador deveria ter mobilidade de um cargo para outro e que, com uma conta individual, poderia mudar de uma ocupação para outra sem deixar de poupar, o que se produziu, então, é a transformação do trabalhador com direito a aposentadoria em um consumidor de serviços financeiros. E aqueles que não tinham nenhuma capacidade de poupança, não tinham um emprego formal, foram ficando excluídos do sistema.
Levou quase 25 anos até que o governo da Dra. Bachelet fizesse uma avaliação do sistema e ali se percebeu, muito seriamente, que o sistema excluía a metade da população idosa, que não ia ter nenhuma aposentadoria.
Sul21 – O Brasil tem atualmente um sistema tripartite. O trabalhador contribui com o INSS, o empregador contribui e o governo arrecada outras contribuições da sociedade e aporta no sistema. No Chile, o empregador também contribuía para o sistema anterior?
AU: Sim, o empregador contribuía e o estado também provinha benefícios ao sistema, como uma garantia, bem como contribuía como empregador da força de trabalho estatal.
Sul21 – E o sistema de capitalização acabou com a contribuição do empregador?
AU: Na capitalização, sob determinação dos supostos neoliberais de que é preciso baratear a contratação de mão de obra para o empregador, isso significa que o empregador não tem que contribuir para a aposentadoria. Eles disseram que 10% de poupança do trabalhador bastava para ter uma taxa de retorno de 70% dos salários da ativa no momento da aposentadoria. Isso não se tornou realidade, era uma fantasia.
Sul21 – Quando se cita a situação da previdência chilena aqui no Brasil, muitas pessoas dizem que 80% dos aposentados chilenos recebem menos que um salário mínimo. Essa informação procede?
AU: A primeiro avaliação que se fez em 2006, com a presidenta Bachelet, preocupou-se com a cobertura. Metade não estava ganhando absolutamente nada. Em consequência, na reforma de 2008, criou-se o pilar solidário, que são dois benefícios. Uma aposentadoria básica solidária, para quem não participou de nenhum sistema e não fez contribuições, e um subsídio previdenciário solidário para quem fez algum tipo de poupança e autofinanciou a aposentadoria. Esse pilar solidário é financiado pelo governo, é um subsídio do estado para um mercado que não funciona. Mas não é um direito, somente tem acesso quem não tem aposentadoria ou tem aposentadorias ruins e pertencem a 60% das famílias mais pobres. Não é para todos. Então, hoje em dia, há um sistema de proteção para os mais pobres, mas muito ruim, e um sistema que poderia operar relativamente bem para quem tem um emprego formal por 40 anos. Mas a grande classe média não tem nada.
Confira a íntegra da entrevista
Por Sul 21