Na semana em que o plebiscito do Estatuto do Desarmamento completa 15 anos, o ‘14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública’, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostra que o armamentismo, um dos pés da tríade bolsonarista “Deus, família e armas”, avança lenta, mas consistentemente sobre o tecido social brasileiro.
Este ano, o número de novos registros de armas de fogo em poder de colecionadores, atiradores e caçadores (CACs) registrados no Exército mais do que dobrou, chegando a 120%. O total de armas protocoladas anualmente no sistema da Polícia Federal (PF), onde são incluídas as compradas por cidadãos comuns, também tem crescido: de 3 mil em 2004 para 54 mil em 2019.
Dois sistemas diferentes agrupam os registros de armas de fogo no Brasil. O Sistema Nacional de Armas (Sinarm) é controlado pela PF e reúne as armas da própria corporação, as usadas pelas polícias civis dos estados, Polícia Rodoviária Federal, guardas municipais e de órgãos como Ministério Público e Poder Judiciário, além daquelas compradas por qualquer cidadão que tenha direito a posse ou porte.
Nesse sistema, havia 637.972 registros ativos de armas de fogo em 2017. Em 2019, o número passou para 1.056.670. A maioria delas (35,2%) pertencia a cidadãos que as usam para sua defesa pessoal, segundo dados fornecidos pela PF e compilados pelo Instituto Sou da Paz.
No primeiro semestre deste ano, a PF concedeu mais 58 mil registros de armas de fogo para defesa pessoal, quatro mil a mais do que em todo o ano passado. Mantido o ritmo, o volume pode superar os 100 mil neste ano.
Esses números não incluem os registros concedidos para CACs, cuja competência é do Exército. Esses são regidos por normas diferentes. A idade mínima para pedir um registro de CAC é de 18 anos, enquanto para a posse de arma para defesa pessoal é de 25 anos, por exemplo.
O Exército é responsável pelo Sistema de Gerenciamento Militar de Armas de Fogo (Sigma), que reúne dados das armas registradas para as Forças Armadas, policiais militares dos estados e Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Também agrega armamento e munições usadas pelos CACs, uma facção ativa e barulhenta do chamado bolsonarismo de raiz.
No sistema do Exército, havia 1.128.348 registros ativos de armas de fogo até agosto. Do total, 496.172 nas mãos dos CACs – número 120% maior do que o verificado em 2019. No total, quase metade de todas as armas registradas pelos militares está na posse de civis. Os policiais e bombeiros militares têm 526 mil armas registradas – diferença de apenas 30 mil armas entre os agentes de segurança pública e os civis, no universo das registradas legalmente.
As regras para a aquisição de armas por caçadores, atiradores e colecionadores foram alteradas em junho de 2019. Hoje, elas permitem inclusive a compra de dois tipos de fuzis, calibres 556 e 762. O volume anual de novos registros CAC passou de cerca de 9 mil em 2014 para 225 mil em 2019. Nos seis primeiros meses de 2020, foram concedidos pelo Exército mais 75 mil registros do tipo.
Diretor-presidente do Fórum, Renato Sérgio de Lima aponta que é pouco provável que o aumento entre os CACs seja em decorrência de um maior interesse por prática esportiva. “A gente vê esse dado como uma forma de burlar o Estatuto do Desarmamento. Na prática, estamos perdendo o controle e o rastreamento, independentemente de a arma ser permitida ou não”, afirma.
“O registro via CACs virou um subterfúgio para pessoas que querem ter acesso às armas. Há clubes de tiro que oferecem até serviço de despachante para pedir o registro. Isso tem sido utilizado como uma forma de burlar a lei”, disse Felippe Angeli, gerente de advocacy do Instituto Sou da Paz, à ‘DW Brasil’.
“Todo dia liga um aqui querendo informação”, confirma Edson Fonseca, do Clube de Tiro para Desporto de Campo Grande (MT). Segundo ele, a flexibilização legal do uso de armas contribuiu para o aumento na procura. “O pessoal acha que é simples; só pegar a arma e vir atirar”, contou ele, alertando sobre os processos para se associar ao clube e adquirir o registro.
Para Maicon Bruce, do Clube de Caçadores de Campo Grande (MT), os processos foram acelerados: “Desde o ano passado teve um aumento bem grande (da procura) e o Exército está um pouco mais ágil (nas emissões) também”.
Do total de um milhão de armas no Sinarm, mais de 370 mil estão nas mãos de civis. Para se ter uma ideia, as empresas de segurança têm 193 mil armas. Combinando essas empresas (dados do Sinarm) e as polícias e bombeiros militares (dados do Sigma), ainda há uma diferença de 140 mil armas em comparação aos civis.
“O Anuário desse ano conta que o número de armas de fogo vendidas no Brasil aumentou de maneira estrondosa. Há alguns pontos de atenção como o Distrito Federal. Hoje, no DF, você tem uma arma a cada 11 pessoas. De modo geral, o brasileiro tem se armado e se armado bastante”, aponta o advogado Ivan Marques, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Ivan, que também é presidente da Organização Internacional Control Arms, faz um alerta: “O número de CACs com registro de armas é quase igual ao número de armas de polícias e bombeiros militares em todo o país. Tem uma classe com igualdade de poder de fogo com as polícias e forças de segurança no Brasil”.
Armas legais alimentam mercado ilegal
Para David Marques, coordenador de projetos do Fórum e doutorando em sociologia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), ambos os sistemas de controle são obsoletos e não dão conta de indicar exatamente quantos cidadãos possuem armas de fogo legais – questão que especialistas tentam responder há anos. “Também não ajuda a instabilidade jurídica promovida pelo sem-fim de decretos e alterações de portarias publicadas pelo governo a partir de janeiro de 2019”, avalia.
Mesmo com mais armas e munição circulando pelo país, as apreensões caíram 1,9% nas operações da Polícia Rodoviária Federal e 0,3% nas apreensões feitas pelas polícias estaduais em 2019, na comparação com 2018.
“Como os números demonstram um aumento significativo nos registros de armas ativos, tanto para civis quanto para forças de segurança, e, historicamente observa-se que parte dessas armas migra do mercado legal para o ilegal, infere-se que a diminuição das apreensões é também sinal de redução de interesse neste tipo de operação”, avalia Ivan Marques.
Em 2019, das 105 mil armas apreendidas no país, pelos menos 6.740 caíram no mercado ilegal. Segundo David Marques, o número pode ser ainda maior, já que muitos proprietários de armas legalizadas não registram em sistema quando seus equipamentos são roubados ou extraviados.
Para ele, é preciso que a sociedade cobre mais controle do Estado. “A gente não pode achar natural que as polícias apreendam menos armas num contexto em que temos mais armas em circulação. A gente tem que demandar, para que seja possível haver uma redução de homicídios, que a gente tenha polícias preparadas para lidar com o mercado ilegal de armas, com mais investigação e inteligência.”
Uma pesquisa realizada em 2013 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estimou que o aumento de 1% de armas de fogo em circulação elevaria em até 2% a taxa de homicídio no país. Para David Marques, um dos fatores que podem ter contribuído para o aumento de mortes violentas intencionais no primeiro semestre de 2020 é justamente a disponibilidade de armas. Houve 25.712 mortes, ante 24.012 no mesmo período do ano passado – aumento de 7%.
“A questão da violência é um fenômeno multidimensional, que sofre influência de diferentes fatores, e um deles é com certeza a disponibilidade de armas de fogo. Isso está bem comprovado na literatura cientifica, e isso está relacionado também a essa migração, porque algumas dessas armas legais vão ter uma vida útil nas mãos da criminalidade, vão alimentar o mercado ilegal e vão ser usadas em crimes violentos, como homicídio e latrocínio”, explica.
O relatório ‘De onde vêm as armas e munições apreendidas no estado de Goiás?’, do Instituto Sou da Paz, identificou que 43% das armas rastreadas tinham proprietário legal no estado. Tanto a vinculação com o mercado legal quanto a origem nacional contrariam o senso comum de que a as armas do crime sejam oriundas de tráfico internacional.
Além disso, o estudo indicou que 73% das armas haviam sido fabricadas antes da aprovação da Lei 10.826/2003. Isso mostra que o descontrole de armas na década de 1990 produz impactos na violência do Brasil até hoje.
O estudo analisou 8.912 armas e 21.441 munições apreendidas no estado, gerando dados comparáveis com outras regiões do país. Eles reforçam a forte conexão entre o mercado legal de armas e seu uso em crimes. Em todos os locais onde esse rastreamento foi feito, pelo menos um terço das armas consultadas tinham registro legal anterior.
Os rastreamentos incluíram só o banco de dados da PF, pois não há acesso aos registros do Exército. Novamente contrariando o senso comum, entre os dados da PF, a maioria das armas usadas em crimes haviam pertencido a pessoas físicas e predominavam as armas registradas no próprio estado.
Segundo Angeli, as evidências científicas apontam para uma relação entre o aumento da circulação das armas de fogo e o aumento da violência letal. “O próprio presidente foi assaltado e teve sua arma roubada, que pode ter sido usada em outros crimes”, lembra, citando um episódio ocorrido em 1995 com Bolsonaro.
Diretor-presidente do Fórum, Renato Sérgio de Lima frisa que saber o caminho de armas e munições é a melhor forma de investigar um homicídio. Para ele, a quantidade de decretos do governo federal fragiliza o controle.
Ivan Marques aponta que as medidas de facilitação e promoção das armas têm alterado não só a percepção policial sobre a necessidade de apreender armas como pode elevar a violência. Segundo o ‘Anuário de Segurança Pública’, 72,5% das mortes violentas intencionais em 2019 foram causadas por armas de fogo.
“O presidente Bolsonaro promove uma série de facilidades. Pelo menos uma parcela dessas armas legais, que isso historicamente se comprova, vai parar nas mãos dos criminosos, seja por perda, seja por furto, seja por pessoas más intencionadas que compraram uma arma para colocar na mão dos criminosos. O Brasil ainda não está sofrendo os efeitos dessas medidas do Bolsonaro, mas com certeza vai ser sentido.”
Bolsonaro avança sobre o Estatuto do Desarmamento
Sancionada pelo então presidente Luís Inácio Lula da Silva, a Lei nº 10.826/2003, o Estatuto do Desarmamento, estabeleceu normas que ampliavam o controle sobre a posse de armas de fogo. O artigo 35 dizia que “É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas”. Mas, no parágrafo primeiro, indicava: “Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005”.
Foi a essa pergunta que 95 milhões de brasileiros compareceram às urnas para responder sim ou não no domingo, 23 de outubro de 2005. Na ocasião, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a maioria dos eleitores – 59 milhões, ou 63,68% – optaram pelo não à proibição do comércio de armas e munição, contra 36,11% que escolheram o sim. Mais de 26 milhões de eleitores não foram votar.
Após a vitória do não, o artigo 35 foi excluído e o comércio de armas e munição seguiu legal no Brasil. Mas o acesso às armas deve ser restrito a casos específicos e o poder público deve controlar o comércio de armas e munições.
A partir do Estatuto teve início a Campanha do Desarmamento, pela qual o governo pagava a quem entregar sua arma à Polícia Federal. Em junho de 2005, menos de dois anos após a sanção da lei, mais de 360 mil armas haviam sido entregues espontaneamente em todo o país.
Bolsonaro é crítico ao estatuto, mas não tem apoio suficiente no Congresso para alterar a lei. Para agradar à base radical, que deseja mais acesso a armas, e atender à bancada da bala, que representa os interesses da indústria armamentista, optou por fazer mudanças por meio de atos do Executivo, como portarias, decretos e instruções normativas. Desde o início do governo, já foram mais de 20 atos sobre o tema.
“O governo tem lidado com esse tema de uma forma muito ruim, editando uma profusão de atos normativos para gerar dúvidas. Na ponta da linha, o policial que apreendeu uma arma não tem mais a clareza que tinha antes se ela está dentro da lei ou não”, diz a pesquisadora Isabel Figueiredo, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Ela também critica a falta de evidências científicas para embasar as decisões do Planalto. “Quando você pede os estudos técnicos, eles não os têm. Mas há uma coincidência entre reuniões do governo com empresários do setor de armas e a publicação dos decretos.”
A medida mais recente nesse sentido é uma instrução normativa da PF publicada em 20 de agosto, que autoriza cada pessoa a registrar até quatro armas em seu nome, contra duas da norma anterior, e reduz a burocracia do processo. A permissão havia sido estabelecida em decreto de Bolsonaro publicado em janeiro de 2019.
A instrução normativa também facilita a obtenção do porte de arma. Ao contrário da posse, que autoriza o dono da arma a mantê-la somente dentro de sua casa, o porte permite que ele ande com a arma pelas ruas.
Felippe Angeli afirma que esse item deixa uma “preocupante” margem para interpretação. “Há suspeita de interferência política na PF. O (ex-ministro da Justiça Sérgio) Moro fez essa acusação ao sair do governo, objeto de inquérito presidido pelo ministro Celso de Mello no Supremo. Esse nível de subjetividade, em um tema prioritário para o presidente, me causa preocupação”, diz.
Da Redação