Instalada há pouco mais de 40 dias, a Comissão Arns de Direitos Humanos divulgou nesta terça-feira (9) os primeiros casos que serão foco de investigação, mas seus integrantes também comentaram outros episódios, além de criticar o “projeto anticrime” apresentado em fevereiro pelo ministro Sergio Moro. O presidente do colegiado, o ex-ministro Paulo Sérgio Pinheiro, disse que a proposta significa “licença para matar, o liberou geral”. Ex-secretário estadual de Segurança Pública Antonio Cláudio Mariz de Oliveira reforçou dizendo que “agora vai se poder matar em situações as mais esdrúxulas”. Um parecer sobre o projeto será encaminhado ao Congresso.
Integrantes da comissão fizeram críticas também a declarações de autoridades que, para eles, estimulam um clima de violência no país. Para Pinheiro, o que realmente dá a medida do retrocesso são as “propostas legais”, as medidas apresentadas pelo governo, como o projeto de Moro e a liberação de compra e posse de até quatro armas por pessoa, via decreto assinado em janeiro por Jair Bolsonaro. “Tivemos 62 mil homicídios (no ano passado). Então, queremos melhorar esse recorde”, afirmou, durante entrevista coletiva na manhã de hoje.
Um dos casos que será apurado pela Comissão Arns é o da chacina de Fallet-Fogueteiro, comunidade na região central do Rio de Janeiro – operação policial terminou com 15 mortos, sete dentro de uma casa. “Na Assembleia Legislativa, o deputado chamado Rodrigo Amorim fez uma homenagem aos policiais que mataram os meninos. Homenagem essa que permitiu identificar os policiais”, observou Mariz, referindo-se ao deputado eleito pelo PSL, conhecido por, durante a campanha eleitoral, quebrar uma placa com o nome da vereadora Marielle Franco (Psol), assassinada em março do ano passado.
“A comissão vai atuar em casos específicos, mas vai fazer uma grande campanha contra a violência”, disse o ex-secretário. “A prisão sempre foi considerada uma panaceia para os males do crime. Nenhuma ação para evitar as causas do crime, é sempre pós-crime. Hoje, além da cadeia, a morte. Vamos matar. Acho que a situação é de altíssima gravidade. Estamos nos encaminhando para uma barbárie social”, acrescentou Mariz.
Ao responder a pergunta de um jornalista sobre o fato de o governador paulista, João Doria (PSDB), ter elogiado a recente ação policial que resultou em 11 mortes em Guararema, na região metropolitana, Mariz ironizou: “Acho que o governador ficou com ciúme daquele deputado do Rio”. “A celebração da morte não é uma política de segurança”, acrescentou Pinheiro.
Os integrantes do colegiado ressaltaram que não se trata de ser contra a polícia. O criminalista José Carlos Dias, ex-ministro e ex-secretário, falou sobre a proposta de criar “uma mesa nacional de diálogo contra a violência”. A violência que atinge o cidadão, mas também os agentes públicos, acrescentou. Eles lembraram que, apenas em 2018, 385 policiais foram mortos. O professor e historiador Luiz Felipe de Alencastro citou a preocupação com a incidência de suicídios desses profissionais.
O problema, diz a jornalista Laura Greenhalgh, é a tentativa do governo de construir “novas narrativas”, geralmente pró-violência. “A eleição acabou, mas os discursos populistas continuam”, afirmou. “Ajudaria muito se os governos não incentivassem”, disse a cientista política Maria Hermínia Tavares de Almeida. “Existe um clima que estimula isso, no qual as pessoas se sentem mais livres, menos temerosas.”
Entrave ao desenvolvimento
Outro caso que será investigado refere-se à reserva indígena dos Waimiri Atroari, em Roraima, em uma região onde o governo pretende fazer o chamado Linhão de Tucuruí, uma linha de transmissão de energia com 3 mil quilômetros, entre Boa Vista e Manaus. “Não é uma questão de indenização financeira. Esse povo pede para ser ouvido, está cobrando respeito”, afirmou Laura, criticando a retomada de um discurso (“Passadista e sem fundamento”) que “recoloca o índio como entrave ao desenvolvimento nacional”.
Entre outras medidas, a Comissão Arns vai solicitar audiências com a procuradora-geral da República e com o escritório brasileiro da Organização Internacional do Trabalho – os integrantes do colegiado lembram a Convenção 169 da OIT, sobre povos indígenas. Para Laura, hoje o projeto está sendo “politizado”, na medida em que o governo quer implementar as linhas sob o pretexto de reduzir a dependência de fornecimento da Venezuela.
“O Brasil não é uma ilha, assinou convenções internacionais, os governos ratificaram todos os tratados de direitos humanos. Não dá para um membro do governo dizer ‘não vamos mais consultar os povos indígenas'”, reagiu Pinheiro.
Um terceiro episódio será apurado pelo colegiado: o da morte de um jovem por um segurança do hipermercado Extra, no Rio, em fevereiro. Nesse caso, diz o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, o objetivo será conversar com as empresas para tentar evitar que isso se repita. “O nosso trabalho será mais preventivo”, comentou.
O presidente da Comissão Arns observou que o grupo não pretende substituir a ação das autoridades. “Mas queremos exigir transparência e que as instituições funcionem. Para que a nossa voz possa ajudar a não permitir que casos como Fallet venham a cair no esquecimento.”
Pinheiro lembrou ainda que não se trata de uma comissão de “oposição” ao governo. “A centralidade da nossa atuação é defender a manutenção de uma política de Estado de direitos humanos.”