A disputa pelas presidências da Câmara dos Deputados e do Senado Federal reforçou a posição do imposto sobre grandes fortunas nos debates em torno da reforma tributária. Em meio às negociações por apoio, e a despeito da oposição do ministro-banqueiro da Economia, Paulo Guedes, deputados do PT, PSB, Rede, PCdoB, PDT e PSOL apresentaram ao relator da reforma tributária na Câmara, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), a proposta “Tributar os super-ricos para reconstruir o país”, que agrega mais de 60 entidades da sociedade civil. Ele indicou que pode incluir a discussão em sua proposta.
A Câmara discute desde 2019 um projeto para reformular o sistema tributário nacional. A tendência é que ele avance neste primeiro semestre. A aprovação de tributos sobre a renda dos mais ricos é um dos compromissos assumidos pelo candidato Baleia Rossi (MDB-SP) com o PT e demais partidos de oposição em troca de apoio na eleição para a Mesa Diretora da Casa, em 1º de fevereiro.
Subordinada ao Ministério da Economia, a Receita Federal verbalizou a posição do chefe, que invariavelmente defende que a criação do tributo geraria fuga de investidores para países onde não há a taxação. Em documento enviado ao Congresso Nacional, o órgão argumenta que há medidas arrecadatórias mais eficazes, como mudança na tributação sobre o mercado de capitais, taxar a distribuição de lucros e dividendos e acabar com programas de Refis (parcelamento de dívidas com a União).
Para o economista Bráulio Borges, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV), a Receita não deveria apresentar essas propostas como alternativa à tributação sobre grandes fortunas, pois “uma coisa não afasta a outra”. “Taxar dividendos é taxar renda (fluxo contínuo de rendimentos), e não a riqueza (patrimônio já conquistado)”, explica.
Borges cita como exemplo uma comissão técnica do Reino Unido que, embora contrária anteriormente ao tributo sobre fortunas, recomendou a adoção temporária do imposto diante da crise da Covid-19. A ideia, segundo ele, também deveria ser aplicada no Brasil, onde a desigualdade se agravou por causa da pandemia. “É uma questão de justiça.”
Na maioria dos países desenvolvidos, a tributação é cobrada sobre patrimônio e renda. No Brasil, sobre o consumo das pessoas, penalizando aqueles com renda menor. Além disso, o imposto sobre grandes fortunas é o único dos sete tributos previstos na Constituição Federal de 1988 que ainda não foi regulamentado.
O que a oposição pretende é mudar isso em uma regulamentação dividida em duas fases de execução, com os primeiros cinco anos tendo alíquotas mais altas para suprir as demandas financeiras causadas pela pandemia do coronavírus.
Coordenador dos estudos que fundamentaram a campanha, o professor do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) Eduardo Fagnani afirma que a calibragem da proposta prevê que 59 mil pessoas passariam a pagar o tributo, o que corresponde a 0,028% da população brasileira. A arrecadação estimada do novo imposto seria de R$ 40 bilhões ao ano, valor superior ao orçamento do Bolsa Família.
Fagnani argumenta que a proposta tem um potencial de arrecadação de R$ 290 bilhões, ao mesmo tempo em que isenta quem ganha até três salários mínimos. “Esse projeto que apresentamos taxa mais apenas 600 mil brasileiros, 0,3% da população, enquanto isenta outros 11 milhões de baixa renda. É uma alternativa que tira de super-ricos para dar aos pobres, inclusive visando ao financiamento de um programa de renda básica, necessário e urgente para que possamos sair da crise”, afirmou.
Para o professor, a medida seria uma forma de reduzir a desigualdade social do Brasil e minimizar injustiças do sistema tributário, que atualmente pesa mais sobre os ombros das famílias de menor renda. “Em função da gravidade desta crise, com uma grande parcela da população sem trabalho e renda, será que não é adequado que 59 mil pessoas contribuam para que 40 milhões possam ter uma renda básica?”, questionou.
Apoio cresce entre parlamentares
A nova rodada do Painel do Poder, serviço de pesquisas do portal ‘Congresso em Foco’, aponta que a taxação de grandes fortunas é o ponto de maior concordância entre líderes do Congresso em relação à reforma tributária. A pesquisa, que revela a visão das principais lideranças da Câmara e do Senado, atesta que os líderes consideram que a reforma tributária é a que tem mais chances de ser aprovada neste semestre.
No mesmo grau de convergência entre os entrevistados está uma proposta considerada neutra, mas que encontra maior ressonância na direita, a redução da quantidade de normas e regras para melhor o ambiente de negócios, ou seja, a desburocratização. Cada uma das duas medidas é considerada prioritária por 28,5% dos líderes ouvidos.
“Pode ser que estejamos assistindo à construção do consenso possível, lembrando que, por se tratar de uma PEC, há a necessidade do quórum qualificado de três quintos (apoio de pelo menos 308 dos 513 deputados e de 49 dos 81 senadores)”, diz trecho do relatório do Painel sobre as conclusões da pesquisa.
O levantamento também aponta que o governo terá dificuldade para aprovar um imposto sobre transações financeiras digitais, a exemplo da extinta CPMF. Esse assunto é tratado como prioridade por apenas 2,9% dos líderes. Também aparece com baixa adesão a desoneração dos produtos da cesta básica, lembrada em 4,3% das respostas.
“No projeto do governo Bolsonaro, a Reforma Tributária se limita a propostas como a fusão de impostos como PIS e Cofins, a criação de um imposto único de valor adicionado substituindo os outros tributos (inclusive desvinculando de financiamentos como o da Seguridade Social). A Reforma de Paulo Guedes preserva a estrutura tributária perversa e injusta, que beneficia os banqueiros, grandes empresários e os bilionários”, comparam os pesquisadores da campanha pró-tributo sobre grandes fortunas.
Tendência se alastra pelo mundo
Ano passado, em meio à crise econômica causada pela pandemia, as fortunas das pessoas mais ricas do mundo continuaram crescendo. Por outro lado, a pandemia devastou as finanças públicas ao redor do globo, aumentando os gastos em trilhões de dólares, da Índia ao Canadá, enquanto reduziu a arrecadação de impostos.
O fenômeno encorajou governos e parlamentos a adotar a tributação sobre fortunas. Um levantamento da agência Bloomberg destaca que, do Chile ao Reino Unido, partidos de esquerda, parlamentares, ativistas e acadêmicos lançam propostas de impostos sobre milionários e bilionários com o objetivo de taxar diretamente seus ativos, em vez de aumentar os impostos sobre fontes como a renda.
A Argentina aprovou um imposto único sobre patrimônio em dezembro passado, e o Congresso da Bolívia, cumprindo uma promessa de campanha do novo presidente Luis Arce, deu sinal verde a um imposto anual sobre grandes fortunas no final do ano. Parlamentares de outras partes da América Latina – como Chile e Peru – pressionaram recentemente por medidas semelhantes.
Nos Estados Unidos, progressistas pressionam no nível estadual. Começaram por dois estados controlados pelos democratas, Califórnia e Washington, onde residem pelo menos seis das dez pessoas mais ricas do mundo.
“No mundo todo, você vê uma crescente conscientização sobre o crescimento da riqueza e das desigualdades de renda, combinada com a crescente conscientização de que nosso sistema tributário não é capaz de lidar com esse problema”, disse o professor de direito da Universidade de Indiana, David Gamage, que ajudou a desenvolver propostas de impostos sobre fortunas.
Enquanto metade da tributação no Brasil incide sobre o consumo da população, em países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne as nações mais desenvolvidas do mundo, a tributação sobre o consumo é, em média, de 32%. Em 2019, o relatório de desenvolvimento humano divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) apontou que o país é o sétimo mais desigual do mundo.
O Brasil também é o segundo país em concentração de riqueza no mundo. O Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado em 2019, mostra que o país só perde para o Catar no quesito má distribuição de renda quando analisado o 1% mais rico.
Da Redação