Ana Clara, Agência Todas
Limpar chão com cloro, higienizar maçanetas, interruptores, banheiros, lavar, estender, passar roupas mais vezes, esperar mais tempo pelo ônibus, enfrentar tensa o transporte público lotado, demorar mais de uma hora em procedimentos antes de descansar depois de um longo dia de trabalho e ainda não poder abraçar parentes e entes queridos dentro da própria casa.
Essa tem sido a rotina das trabalhadoras mulheres em serviços essenciais durante o período de isolamento exigido pelos governos estaduais por conta da pandemia mundial de Coronavírus.
“A limpeza da casa aumentou porque faço mais vezes: limpo chão, banheiro, maçanetas e lugares que nem imaginava. Lavo mais louça e mais roupa porque meu marido e meu filho estão em casa, mas não colaboram. Estou surtando, porque preciso gritar e espernear para que alguém me ajude”, relata Rita Cássia Costa, servidora do Hospital Geral de São Mateus, periferia da zona Leste de São Paulo.
Rita tem 56 anos, é casada, tem dois filhos e mora em um conjunto habitacional em Artur Alvim, também na zona Leste. Com a quarentena, a sua rotina de trabalho mais que dobrou. Ela é responsável por levantar processos de adicional de insalubridade arquivados com mais de vinte anos. “É muito papel, ácaro, coco de barata. Fico doente, gripada, com muita alergia, sem falar no risco iminente de transitar pelo hospital”. Ela explica que exerce essa tarefa porque o governo quer retirar esse direito, portanto eles precisam atualizar os processos na plataforma em tempo recorde.
Antes das maiores exigências de higiene, as mulheres já dedicavam, em média, 21,3 horas por semana com afazeres domésticos e cuidado de pessoas, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD, 2018), do IBGE. Isso representava quase o dobro do que os homens gastaram com as mesmas tarefas – 10,9 horas.
Mesmo trabalhando fora, a mulher cumpria 8,2 horas a mais em obrigações domésticas que o homem também ocupado. E até mulheres que hoje estão de home office tem chances de estar cumprindo mais horas nos cuidados com a casa, se considerarmos que entre homens e mulheres não ocupados, elas trabalhavam 11,8 horas a mais que eles.
Esses dados já alarmantes antes da pandemia, agora estão ainda mais evidenciados nos relatos das trabalhadoras, principalmente aquelas não podem se isolar. “Os cuidados com a casa triplicaram, só limpo com cândida. Todos os dias passo pano no chão, e lavo as roupas que usei no mesmo dia. Sem contar a higienização nas tomadas, portas etc”, revela Brenda K., 26, operadora de caixa em uma Lotérica, no Tatuapé, zona Leste da capital paulista.
Costuma-se dizer que de uma casa para um lar, o que muda é o afeto dentro dela. Abraçar entes queridos ao voltar do trabalho, tomar um café com a própria mãe, compartilhar o sofá com a avó, acariciar o próprio bebê ou filhos de qualquer idade. O alento afetivo, diante de uma situação de tensão permanente como a pandemia, tem sido uma ferramenta recorrente na saúde mental, incentivada inclusive por altas verbas de orçamento publicitário de grandes marcas. No entanto, esse recurso não está à disposição de todas, principalmente daquelas que precisam sair para trabalhar. A privação da proximidade afetiva dentro da própria casa tem afetado as trabalhadoras e suas famílias de diversas maneiras.
Paula Giancotti, 28, trabalha com atendimento ao público, em Itabirito, interior de Minas Gerais. Ela mora com a mãe de 52 anos, portadora de doença autoimune (Doença de Basedow-Graves) e a avó, 81, que sofre de hipertensão.
Para diminuir as preocupações e as frequentes crises de ansiedade, Paula aumentou as doses de antidepressivo e ansiolítico; e estipulou dias horários para consumir informações sobre a pandemia.
A falta do abraço de um ente querido e a tensão constante não são parte de uma realidade única. Brenda K., operadora de caixa, atende centenas de pessoas diariamente, na maior parte idosos, e não visita mais o tio, de 62 anos, com mal de Parkinson, e contabiliza mentalmente as saudades da avó. “Faz 54 dias também que não vejo a minha avó, de 80 anos. Ela está completamente isolada”, complementa Brenda que diz também evitar ao máximo contato com bebês e crianças.
De fato, a rotina em Lotérica tem sido desafiadora, mesmo com a diminuição da jornada. O auxílio emergencial tem gerado aglomerações nesses estabelecimentos, que fazem parte da franquia da Caixa Econômica Federal. Isso acontece por conta da demora do governo em liberar para todas as pessoas que têm direito ao benefício. “Sem contar que ninguém obedece as normas de ficar em casa. Não se pode levar o governo a sério e, com isso, as pessoas também não levam notícias a sério”, desabafa Brenda.
A operadora de caixa também enfrenta outros desafios no cotidiano. O transporte público está com mais intervalos, portanto demora mais tempo. Se antes ela esperava dez minutos por uma condução, agora leva mais de meia-hora. “E à noite é perigoso, porque só tem gente no ponto, as ruas estão bem vazias”, relata apreensiva.
Até mesmo quem cuida da segurança pública e segue nas ruas está encarando momentos difíceis em relação à afetividade. A soldado da Polícia Militar de São Paulo, Joana*, 21, mora no interior, e não tem contato com a mãe e com os avós desde 22 de março, quando a quarentena foi decretada pelo governo do Estado. Preocupada com os entes queridos, ela também relata as transformações no dia a dia do trabalho policial que mudaram muito, principalmente no protocolo de contato. Segundo Joana, a limpeza do ambiente de trabalho redobrou, as reuniões em locais abertos, a manutenção das distâncias de 1,5m quando há filas e a limpeza nas viaturas são alguns dos novos procedimentos adotados. “Não podemos mais ter contatos desnecessários com as pessoas. Até um aperto de mão faz falta. Outra coisa que parecia boba: mas quando isso acabar quero abraçar meus avós, quero abraçar meus pais, amigos e sem medo de contrair ou contaminar ninguém”, relata a PM.
Se antes chegar em casa era o bálsamo para um dia cansativo, e era apenas se jogar no sofá nem que fosse por alguns minutos, agora as trabalhadoras enfrentam um longo procedimento de higienização e cuidados que levam, segundo elas, de 40 minutos a uma hora — sem contar as horas a mais destinadas às maiores exigências com higiene. As trabalhadoras da saúde são as que levam mais tempo para realizar esse procedimento — tanto no próprio local de trabalho, quanto ao chegar em casa, pois são as que apresentam mais risco de contaminar a própria família.
Os profissionais na área da saúde, composta 70% por mulheres, precisam de treinamento principalmente na hora de retirar a roupa. “O problema está no momento de desparamentalizar. É onde há o maior risco de contaminação”, afirma Célia Costa, diretora do Sindicato de trabalhadores estaduais da saúde do estado de São Paulo. Célia relata a tensão e o sofrimento das trabalhadoras da saúde do risco de contágio com os familiares. “Todas estão sofrendo com a volta para a casa. Tem trabalhadoras que se isolaram completamente da família”, afima.
Outro desafio na rotina da trabalhadora da saúde é a hora de retirar o Equipamento de Proteção Individual (EPI) para ir ao banheiro. Segundo Célia, o procedimento exige tempo, treinamento e cuidados redobrados e, no caso das mulheres, se torna ainda mais complexo quando elas estão em período menstrual. “As trabalhadoras da saúde passam horas sem ir ao banheiro para não ter que trocar tudo e vestir novamente. O ritmo está intenso nos hospitais e cada minuto conta”, relata a diretora do SindSaúde.
A tensão permanente em não se infectar e não levar contaminação para dentro de casa e familiares é uma preocupação relatada por todas as mulheres — policial, atendimento, caixa de lotérica, profissional da saúde, não importa o setor.
Segundo o IBGE, 87% da população com 14 anos ou mais realizaram afazeres domésticos e/ou cuidado de moradores ou de parentes o que representa 147,5 milhões de pessoas. 93% desses cuidados domésticos e com familiares são feitos por mulheres. Paula Giancotti, que sofre de epilepsia, e cuida da mãe com doença autoimune e da avó hipertensa com problemas respiratórios, ao ser questionada sobre qual a maior preocupação em relação à própria saúde e da família, devolve a pergunta: “Morrer?”.
Confira abaixo segunda reportagem do Especial Elas Por Elas, Dia da Trabalhadora