Ana Clara, Agência Todas
O processo de “se assumir” lésbica, que vai muito além da descoberta individual, pode variar bastante de acordo com o contexto histórico e os valores de cada geração. Apesar dos avanços e retrocessos, a impressão geral é de que, a cada novo tempo, à “nova geração” os processos aparentam ser mais fáceis ou menos tortuosos — o que não significa menos dolorosos. Cada geração enfrenta seus próprios desafios e dificuldades e responde a partir das perspectivas que têm — sejam culturais, sociais, políticas, econômicas ou, até mesmo, tecnológicas.
A linha permanente que costura essas histórias tem um elo em comum: a coletividade. Ter amigues, fazer parte de um grupo, seja de apenas amizade ou também político, reconhecer-se na outra e no outro e, principalmente, pertencer são os enlaces que fizeram cada mulher cravar seu ponto de não retorno.
Rita Quadros, 55 anos; Camila Furchi, 39 anos; e Ana Carolina, 22 anos abriram suas histórias, cada uma à sua maneira, para falarem de seus processos de descoberta e saídas do armário. Cada uma a seu tempo, com seus próprios desafios, que ainda seguem em voga nessa grande labuta diária que é sobreviver a um governo fascista, reacionário, conservador e misógino.
Rita escreveu uma carta a si mesma quando completava 18 anos; Camila Furchi abriu seu coração e refletiu sobre a própria história; e Ana Carolina sintetizou a curta, porém não menos intensa, trajetória para se reafirmar no mundo pós millenial.
Abrimos essa série especial com a carta de Rita Quadros, 55 anos, militante histórica do Partido dos Trabalhadores.
DE RITA PARA RITA
Olá, Rita
Hoje, resolvi te escrever uma carta. Meu momento de referência pra falar contigo será 1982, ano de grandes acontecimentos na sua vida: completará 18 anos e terá sua primeira namorada. A cantora Elis Regina morrerá já em janeiro e, em novembro, acontecerá a primeira eleição direta para governo do Estado. A democracia estará renascendo. Você, que é libriana e adora ter nascido na primavera, se ressentirá do fato de não ter chegado à maioridade a tempo de poder votar, mas participará do processo eleitoral.
Do ponto de vista pessoal, dará um passo importantíssimo quando assumir o desejo e paixão por uma mulher que encontrou no local do seu esconderijo – a igreja. Romance de 15 dias, que não resistiu ao flagra de seu irmão, mas que já terá cumprido o papel de lhe encorajar a olhar nos próprios olhos. O que era pra ser uma tragédia, se transformará em apoio e acolhimento materno, algo que constituirá de maneira ímpar sua trajetória militante.
Passados 10 anos de sua descoberta e militância partidária, participará da construção Núcleo de Gays e Lésbicas no PT, dando visibilidade ao que o estatuto partidário já previa, mas que ficava no armário. Antes disso, participará de um grupo de estudos chamado Etcétera & Tal para, a partir da troca de experiências pessoais e leitura possa refletir sobre seu lugar no mundo. Sua trajetória militante passará por diversos momentos: entender o incômodo de, sendo lésbica, militar num movimento denominado gay; elaborar a insatisfação da indiferença à fala feminina; perceber que o machismo estará instalado nesse espaço de luta por direitos e que homens, mulheres e trans têm dificuldade de perceber isso. Conhecerá o feminismo aos poucos, conversando com mulheres feministas, lendo. Aprenderá que a luta por direitos incluirá a visibilidade como pauta importante para as mulheres e, nesse percurso, conhecerá outras invisibilidades: racial, geracional, econômica, de classe.
Olhando pra você: reconheço a jovem inquieta, que não aceita aquilo que não compreende, que lhe causa desconforto. Essa característica influenciará demais seu percurso militante na busca por visibilidade política. Em 1997, por conta da atuação partidária aliada ao grupo de estudos, participará da organização da primeira Parada do Orgulho Gay, onde ficará por pouco tempo. Seu incômodo com a invisibilidade da pauta lésbica e o viés econômico te levará para outros lugares, o mais marcante – penso – será no ano de 2003, quando participará da organização do V Seminário Nacional de Lésbicas e da organização da 1a Caminhada de Lésbicas e Simpatizantes de São Paulo, momento de visibilidade política das pautas próprias das lésbicas. Na organização da Caminhada ficará por mais tempo, contribuindo para o fortalecimento político e empoderamento das mulheres que amam mulheres.
Na vida, vai se deparar com seus limites também. Em 2005, você comporá a comitiva paulista do X Encontro Feminista Latino Americano, no Brasil, momento em que as lésbicas irão travar intenso debate sobre a recém conquistada cadeira no Conselho Nacional de Direitos da Mulher. Serão noites de reuniões com representantes de todo o país discutindo o perfil da representante, pois havia uma crítica muito grande sobre o personalismo e excludência no movimento de lésbicas. Disso resulta que você assumirá a tarefa, junto com Carmem Lucia Luiz, de Santa Catarina. Veja, nesse seu tempo, você já se identifica com as lutas e organização dos movimentos populares e não pensa no que hoje chamamos de “caixinha” e isso fará com que não consiga assumir o papel de dialogar exclusivamente com o segmento de lésbicas ou de ser, prioritariamente, despachante da demanda dos grupos. A insatisfação é geral e você optará,também por outros motivos, por não exercer seu segundo ano de mandato.
Até hoje minha atuação militante é pautada pela visibilidade e, confesso, fiquei surpresa quando, ao ler um artigo que conta os 30 anos da história do movimento LGBT no Brasil, a lembrança da primeira pessoa a ocupar o assento do CNDM seja apenas a partir da Carmem. Menos porque não fala da pessoa mas, o mais importante na minha opinião, por não tratar de algo que foi muito importante para a organização das lésbicas no país.
Sabe o cara que você fará campanha pra governador? Em 2003, será eleito Presidente do Brasil, Lula será o primeiro presidente operário, será reeleito e fará Dilma Roussef f sua sucessora, a primeira mulher Presidenta. Para o segmento LGBT significará importantes avanços para o segmento LGBT: trabalho, renda, saúde, universidade, moradia, direito à identidade, cultura e ações que ajudarão no avanço à cidadania. Infelizmente, o revés irá nos alcançar, Dilma será deposta por um golpe, Lula será preso e a LGBTfobia sai do armário com força.
Escrevo esta carta já me aproximando dos 56 anos e vou te contar uma coisa, ainda temos muito a fazer para combater a misoginia, o machismo, a violência contra a mulher, o estupro corretivo, a objetificação feminina mas, saiba, um dos maiores aprendizados foi saber que juntas somos muito fortes.