Partido dos Trabalhadores

Euclides André Mance: A Estratégia Democrático-Popular

Governos de centro-esquerda no Brasil abandonaram progressivamente estratégia democrático-popular e abraçaram a estratégia social-democrata, diz Mance

Wilson Dias/Agência Brasil

Para Mance, defesa da reforma agrária é exemplo de eixo de lutas do movimento democrático-popular

Introdução

estratégia democrático-popular, elaborada no seio da esquerda brasileira na década de 1980, tem sua formulação inicial marcada por aquele momento histórico. Na década seguinte, ela foi aperfeiçoada em vários aspectos, com a elaboração coletiva sobre os desdobramentos de sua própria execução pelos atores do campo democrático e popular. Em síntese, ela apresenta uma alternativa às estratégias originárias da social-democracia e da ditadura do proletariado para a construção de uma sociedade socialista (1).

A partir do final dos anos 90, entretanto, essa estratégia foi gradativamente abandonada pelos setores hegemônicos da esquerda no Brasil, em favor de composições pragmáticas cada vez mais amplas com os então chamados setores progressistas do empresariado nacional. A fragilização do campo democrático-popular, resultante desse abandono, facilitou a consumação do golpe de estado jurídico parlamentar de 2016.

Nas páginas deste artigo, apresentamos apenas alguns elementos gerais e introdutórios ao tema.

Democracia e Socialismo

Ao longo do tempo, a democracia assumiu diversas formas de realização histórica. Embora signifique etimologicamente o poder (kratos) do povo (demos), geralmente as formas de intermediação para a sua realização institucional são marcadas por contradições entre classes sociais, nas quais o poder do Estado não é, em maior medida, posto ao serviço do interesse público – isto é, do povo, do bem comum, do bem público – mas ao serviço de interesses privados das classes economicamente dominantes que o hegemonizam.

Contrapondo-se ao uso do Estado pelas forças do capital, os setores populares da sociedade civil em diferentes países – isto é, a população organizada em movimentos sociais, entidades e partidos que defendem projetos políticos e sociais que atendam aos interesses das classes trabalhadoras e da maioria da população em geral, particularmente das populações mais empobrecidas, vulneráveis, excluídas e negadas em sua dignidade humana – conformam o que se pode denominar como campo democrático e popular. Construindo e consolidando o poder público não-estatal – isto é, o poder do povo, o poder popular – buscam ampliar sempre mais a participação institucional das classes populares na definição e gestão das políticas públicas, estatais e não-estatais, através de mecanismos como fóruns, redes, plenárias, conferências, conselhos, orçamentos participativos, plebiscitos, referendos etc.

Busca-se, portanto, a consolidação da democracia e a sustentação das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas de todos, sob os aspectos econômico, político, social e cultural, assegurando-se, entre outras coisas,  a liberdade de pensamento, de expressão e de organização, a pluralidade de partidos políticos e de representação, a composição solidária das formas de apropriação pessoal, associativa e pública de meios produtivos e de intercâmbio, a defesa da autogestão dos trabalhadores e de suas comunidades para o desenvolvimento sustentável de suas iniciativas e de seus territórios, a educação permanente de todos, a transparência e o acesso público à informação de qualidade e a democratização da comunicação para tomadas de decisão criteriosas e bem fundamentadas.

Diferentemente da social-democracia ou da ditadura do proletariado, que aspiram reformar ou revolucionar o modo de produção capitalista e sua formação social pelo uso hegemônico dos aparelhos de Estado, a estratégia democrático-popular, numa de suas vertentes, assenta-se em tecer, consolidar e expandir o poder público não-estatal a partir do setor democrático e popular das sociedades, com suas redes econômicas, de poder e de conhecimento, que vão transformando as relações econômicas de produção, intercâmbio, consumo e financiamento, as relações políticas e culturais da sociedade numa perspectiva libertadora, introduzindo e expandindo em todos os espaços possíveis os elementos de um novo modo de produção, autogestionado pelos trabalhadores e por suas comunidades, de um novo sistema de intercâmbio, fundado no valor de uso como satisfator das necessidades humanas, e de uma nova formação social, substantivamente democrática.

Somente acumulando forças cada vez maiores no seio da sociedade civil em torno de eixos estratégicos de luta, que se materializam em formas de ação direta – nos campos econômico, político e cultural –, de elaboração de políticas públicas e de confronto com o Estado ou de participação institucional estatal, torna-se possível ampliar o poder popular no controle interno dos aparelhos de Estado. A eleição de governos democráticos e populares, como consequência desse acúmulo de forças convertido em poder popular, tem por objetivo central – com a ampla participação institucional dos setores democráticos e populares – desprivatizar o Estado, colocando-o ao serviço do interesse público e da proteção do bem comum, suprimindo pois a sua subordinação aos interesses do capital.

Poder Público Estatal e Poder Público Não-Estatal

A distinção qualitativa realizada na estratégia democrático-popular entre força e poder, entre acúmulo de forças e conquista do poder, mantém uma distinção clássica entre sociedade civil e Estado. Mas é um equívoco considerar que a conquista do poder se refira exclusivamente à conquista do controle dos aparelhos de Estado. Pois o acúmulo de forças na disputa de hegemonia não visa apenas o controle desses aparelhos, mas a real transformação da sociedade como um todo, seu modo de produção, seu sistema de intercâmbio e sua formação social.

Como o novo modo de produção e de intercâmbio deve ser organizado por livres produtores associados, eles estão na base do novo poder público que se constrói. A livre associação dos produtores é elemento central da economia solidária, cujo caráter transformador se revela quando é praticada como economia de libertação e não apenas como forma de sobrevivência ou de resistência.

Assim, o poder do povo, o poder popular, o poder público é a base fundante da democracia, que sustenta e protege as liberdades públicas e pessoais de todos e não os interesses do capital. Quando a acumulação de forças na sociedade civil resulta em organizações sociais de caráter permanente, democraticamente autogestionadas pelos seus participantes com uma perspectiva de libertação da classe trabalhadora para a realização de tais liberdades, essa acumulação de forças resulta em poder popular. Ao atuar na defesa do interesse público, do bem comum, com autodeterminação de fins e autogestão de meios, esse poder popular se converte em expressão do poder público não-estatal. A consolidação desse poder público não-estatal depende da atuação conjunta e colaborativa dessas organizações, somando suas forças e seus poderes para expandir o projeto de sociedade que defendem.

A grande ilusão alimentada nas estratégias originárias da social-democracia e da ditadura do proletariado é que o poder está centralmente objetivado no Estado. E que, com a conquista dos aparelhos de Estado, torna-se possível efetivar a revolução socialista. Pois, como a experiência histórica demonstrou, o poder de Estado, resumido ao poder exercido através dos aparelhos do Estado, é apenas uma face do exercício do poder político – entendendo-se político como poder determinado pela contradição entre classes. E que ele é insuficiente para instituir, consolidar e proteger um novo modo de produção e um novo sistema de intercambio, ante as pressões internas e externas do capital.

Diferentemente, a estratégia democrático-popular, em determinada perspectiva, enfatiza o papel da acumulação de forças e da construção autogestionada do poder público não-estatal como condição essencial, para que a eleição de governos democráticos-populares resultem efetivamente no avanço e consolidação do novo modo de produção, do novo sistema de intercâmbio e da nova formação social, que vão sendo construídos e consolidados ao mesmo tempo em que se travam as lutas no plano político em torno de eixos de luta estratégicos (2).

Sob a estratégia democrático-popular, formulada em 1987, um governo assim eleito deve ser capaz de:

realizar as tarefas democráticas e populares, de caráter antiimperialista, antilatifundiário e antimonopólio […]: é um governo de forças sociais em choque com o capitalismo e a ordem burguesa, portanto, […] que só poderá viabilizar-se com uma ruptura revolucionária; […] a realização das tarefas a que se propõe exige a adoção concomitante de medidas de caráter socialista em setores essenciais da economia e com o enfrentamento da resistência capitalista. Por essas condições, um governo dessa natureza não representa a formulação de uma nova teoria das etapas, imaginando uma etapa democrático-popular, e, o que é mais grave, criando ilusões […] na possibilidade de uma nova fase do capitalismo, uma fase democrática e popular” (3).

 Eixos de Luta e Programa de Transição

Na definição mais elementar dos anos 1980, “acumular forças […] é acumular experiências de lutas bem-sucedidas e acumular vitórias”. (4) Uma luta bem-sucedida, entretanto, não apenas alcança seus objetivos imediatos e conjunturais mas, contribui para a realização de objetivos estratégicos e estruturais.

No aprofundamento de como articular as lutas populares dessa maneira, surgiu a noção de eixo de lutas5. Um eixo de lutas possui quatro características básicas: mobiliza amplos segmentos sociais em sua defesa, atende a demandas imediatas desses segmentos, combate as estruturas capitalistas que geram a insatisfação dessas demandas e introduz formas pós-capitalistas de atendê-las. Como exemplos de eixos de luta, citamos apenas três: a reforma agrária, a reforma urbana e a economia solidária.

As reformas agrária e urbana atendem às demandas imediatas de terra para plantar e para morar, confrontam o latifúndio rural e a especulação imobiliária urbana. Mas, somente se consolidam como eixos de luta se desenvolvem formas pós-capitalistas de realizarem a produção e o intercâmbio dos frutos da reforma agrária, a produção autogestionada de moradias e a organização do poder popular na autogestão democrática e participativa de seu território.

No caso da economia solidária, ela somente pode ser considerada eixo de lutas quando realiza a libertação de forças produtivas. Nesse caso, ela atende a demandas imediatas de consumo, produção, intercâmbio e financiamento de iniciativas populares e solidárias. Além disso, combate as formas de alienação no consumo, a exploração do trabalho pelo capital produtivo e pelo capital mercantil, a expropriação dos consumidores pelo capital comercial na obtenção dos meios econômicos para a satisfação de suas necessidades e a espoliação pelo capital financeiro no pagamento de dívidas. Ela igualmente introduz estruturas pós-capitalistas, ao realizar a produção, o intercâmbio e o financiamento de forma autogestionada por trabalhadores e trabalhadoras; ao desenvolver um novo sistema de intercâmbio compondo simultaneamente compras, trocas e dádivas, libertando a capacidade produtiva de criação de valor de uso da realização do valor de troca, que ficaria restrita aos limites de dinheiro disponíveis para o intercâmbio dos bens e serviços produzidos ou produzíveis se não entrassem em operação os mecanismos de intercâmbio não-monetário e de dádivas em circuitos econômicos solidários; compartilhando, em fundos solidários de caráter público não-estatal, recursos excedentes gerados na reprodução ampliada do valor, que permitem a realização da libertação das forças produtivas, com a realização de investimentos para a expansão das capacidades de produção, intercâmbio e desenvolvimento tecnológico do setor, passando a produzir não apenas bens de consumo final, mas igualmente meios de produção e novas tecnologias.

 Nos anos 90, outros eixos de luta estavam em construção. Movimentos que enfrentavam a discriminação de gênero, racial, sexual e cultural vão concebendo eixos de luta buscando o atendimento de suas pautas imediatas, o combate às ideologias racistas, machistas e preconceituosas, o combate à moral autoritária e ao direito injusto que legitimam práticas opressivas contra essas populações e a afirmação de uma nova ética na sociedade civil que defenda as liberdades de todos e a afirmação de novos direitos no plano do estado, objetivando-se em lei a garantia dessas novas condutas. Na época, aplicava-se a esse eixo de lutas o conceito de cidadania.

Estava claro para esses movimentos que a mudança desejada no exercício de poder nas práticas cotidianas no seio da sociedade – com o respeito e acolhimento da dignidade humana vivida em sua plena diversidade – não se faz pela imposição de um direito estatal, mas pelo resgate da sensibilidade ética de todos frente à dignidade humana de cada pessoa, sensibilidade essa mutilada pela cultura de dominação existente. Isso exigia, portanto, uma crítica da cultura de massas e dos elementos reacionários da cultura popular, gerando-se assim uma cultura popular que revolucionasse o capitalismo, o machismo, o racismo e todas as formas de exercício autoritário do poder nas relações micropolíticas do cotidiano. Em outras palavras, não se tratava apenas de “eliminar do cotidiano a discriminação e o preconceito, mas fundamentalmente de construir novas relações interpessoais liberadas de todos os códigos culturais opressivos, possibilitando a vazão do desejo em práticas singularizantes que, sendo incompatíveis com as dinâmicas e códigos de reprodução do capitalismo, avançassem como revolução cultural, afirmando uma nova sensibilidade ética e estética – horizonte tido como necessário a um novo projeto político” (6).

Assim, o programa democrático e popular não se reduz a um programa de transição no sentido clássico, isto é, “um sistema de reivindicações transitórias que parta das atuais condições e consciência de largas camadas da classe operária e conduza, invariavelmente, a uma só e mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado” (7).

E não corresponde ao que na social-democracia se denominava programa mínimo, com reformas limitadas ao quadro da sociedade burguesa, nem ao chamado programa máximo, prometido para um futuro incerto, quando seria realizada a superação do capitalismo pelo socialismo.

A elaboração do programa democrático e popular é realizada pelos próprios setores democráticos e populares da sociedade civil organizada, que formalizam, em qualidade e escala, suas próprias demandas, que as reformulam dialogicamente em políticas públicas e que concebem as formas de atendê-las de maneira autogestionada, com o fortalecimento do poder público não-estatal e a participação do poder estatal, quando esta participação seja possível.

Assim, a natureza das demandas varia conforme variam as bandeiras de luta dos diferentes movimentos sociais-populares. A partir da explicitação coletiva dessas demandas e das interfaces que elas mantêm entre si, elas são integradas em eixos de luta estratégicos, que tanto contribuem para a unificação social das lutas, como para a atividade educativa de politização da sociedade – considerando as estruturas econômicas, políticas, culturais e sociais a serem superadas e as novas a serem construídas para o atendimento dessas demandas –, como também para a intervenção política de confronto com o Estado ou de intervenção no seu próprio interior, seja pelos mecanismos de participação institucional conquistados, seja pela eleição de governos democráticos e populares que devem pautar suas ações visando reforçar e consolidar a hegemonia dos atores democrático-populares na sociedade em torno desses objetivos estratégicos.

Modo de Produção Socialista e Economia Solidária

Na década de 80, após a anistia (1979) e a organização de novos partidos, forças do campo democrático e popular concentraram esforços na organização da Central Única dos Trabalhadores e, posteriormente, na Central de Movimentos Populares. É nesse contexto que se delineia a formulação inicial da estratégia democrático-popular de construção do socialismo.

Naquela época não havia o acúmulo, hoje existente, sobre como os empreendimentos econômicos solidários – de produção, intercâmbio, consumo e financiamento – podem ser capazes de avançar, em seu conjunto, na libertação das forças produtivas, com a reprodução ampliada do valor econômico que eles podem realizar ao atuar de maneira colaborativa entre si; ou sobre como podem participar ativamente na organização de um modo de produção e de intercâmbio de caráter socialista, pelo contínuo desenvolvimento de suas forças produtivas em contradição com as forças do capital.

Focada na análise do funcionamento do capital e na crítica das relações capitalistas de produção, todas as formas de economia popular, familiar ou comunitária, que proliferaram a partir dos anos 80, não mereceram, inicialmente, maior atenção na estratégia democrático-popular. Elas eram agrupadas com outras atividades econômicas de pequeno porte, nas quais ocorre a exploração capitalista do trabalho subordinado, identificando-se indistintamente a esses milhões de pequenas empresas, negócios, serviços e trabalhadores autônomos com a etiqueta de pequena burguesia (8), considerada, entretanto, aliada estratégica dos trabalhadores assalariados para a construção do socialismo democrático.

Afirmava-se em 1987 que:

pequena produção serve para que a sociedade desenvolva suas forças produtivas, contribua para que não haja escassez de bens e serviços e permita incorporar ao trabalho o conjunto da população economicamente ativa, sem prejudicar a eficiência das empresas socialistas nem a constante redução da jornada de trabalho. Essa política de desenvolvimento da capacidade produtiva da sociedade, utilizando todas as forças econômicas, é a base da aliança dos trabalhadores assalariados com a pequena burguesia urbana e rural. Essa aliança é, pois, uma questão estratégica, referente tanto à destruição do capitalismo quanto à construção do socialismo (9).

 Apenas no final dos anos 80 e início dos anos 90, retomando-se elaborações de diferentes matrizes teóricas e de práticas históricas de organização dos trabalhadores, vão sendo delineados na América Latina distintos conceitos de economia popular e solidária, possibilitando melhor compreender as diferentes particularidades desses atores econômicos associativos em relação aos demais. Em 2008, a Constituição do Equador, em seu artigo 283, por exemplo, reconhece que “o sistema econômico se integrará pelas formas de organização econômica pública, privada, mista, popular e solidária”.

Numa das definições de economia solidária recorrentes na América Latina, a ênfase recai na autodeterminação de fins e na autogestão de meios pelos trabalhadores e por suas comunidades, conceito que se difunde a partir do socialismo autogestionado, praticado nas nações que compunham a Iugoslávia, após o seu rompimento com o stalinismo em 1950. Nessa definição,

 a autogestão é, antes de tudo, uma relação socioeconômica entre os homens que se funda no principio da distribuição segundo o trabalho e não sobre a base do capital […]. A autogestão é […] uma categoria socialista. A mesma só pode desenvolver-se no campo da propriedade social, isto é, em relações de propriedade em que os meios de produção e o capital social não são propriedade privada do capitalista nem de grupos de trabalhadores de determinadas empresas, nem objeto de gestão monopólica do aparato burocrático ou tecnocrático do Estado.” (10)

A noção de autogestão, amplamente difundida, refere-se à gestão dos trabalhadores sobre as atividades de produção econômica com base nos princípios de autonomia, horizontalidade, democracia direta ou delegada, revogabilidade de mandato e rotatividade de funções. Mas também é compreendida, em algumas abordagens, tanto como uma forma possível de transição para a superação do capitalismo quanto à forma realizada do modo de produção e de intercambio da nova sociedade pós-capitalista.

Alguns supõem que a mera multiplicação de iniciativas de autogestão em meio ao capitalismo possibilitaria aos trabalhadores e às suas comunidades conquistarem a autonomia econômica e política – a sociedade dos produtores livremente associados – sem que para isso fosse necessário realizar uma ruptura do poder político e econômico do capital, exercido por ele sobre o Estado e a sociedade. Diferentemente disso, a estratégia democrático-popular salienta a necessidade de realização dessa ruptura, como já explicitado anteriormente.

A recente retomada do debate sobre a estratégia democrático-popular em partidos de esquerda no Brasil, ao mesmo tempo em que apontou limitações históricas em sua formulação original também permitiu recolher importantes aprendizados sobre os avanços e reveses das lutas da classe trabalhadora em nosso país, permitindo abrir novas e diferentes perspectivas de atualização dessa estratégia de construção do socialismo democrático.

Conclusões

Houve um importante acúmulo teórico e prático no Brasil, nos anos 80 e 90, sobre a estratégia democrático-popular para a consolidação de um poder popular, fundado na autonomia das organizações e na sua integração em ações diretas e institucionais, visando atender a demandas imediatas da população, combater estruturas de dominação econômica, política e cultural e construir um modo de produção, um sistema de intercâmbio e uma formação social socialistas.

Mas, infelizmente, os governos de centro-esquerda no Brasil, nos diferentes níveis da federação, apesar dos processos de participação popular e dos avanços sociais alcançados com as diferentes políticas públicas adotadas, abandonaram progressivamente a estratégia democrático-popular e abraçaram a estratégia social-democrata, de realização de um programa mínimo, circunscrito aos limites de um desenvolvimento econômico nacional, totalmente subordinado às forças do capital produtivo, comercial e financeiro, tanto nacional quanto internacional.

Parecem haver esquecido que sem a consolidação de um poder público não-estatal, ficariam totalmente vulneráveis frente às contradições entre os próprios setores hegemônicos do capital, particularmente em meio às disputas entre o capital produtivo e o capital mercantil pela maior acumulação possível – com sua disputa na realização de lucros – da mais-valia gerada pelo trabalho produtivo; ou frente as disputas e alianças entre setores do capital nacional e internacional quanto aos rumos da economia do país, em função de seus interesses privados sobre os ativos nacionais.

Pareceram haver esquecido, pois, da velha máxima socialista: que a burguesia sempre retoma no futuro com a sua mão direita o que concede no presente com sua mão esquerda, por meio de diferentes mecanismos de exploração, expropriação, espoliação e exclusão, que invariavelmente sempre atingem em cheio as classes trabalhadoras.

Referências Bibliográficas

Notas

  1. Um dos primeiros documentos de elaboração coletiva em que ela é abordada em suas linhas gerais e pode ser tomado como ponto de partida para sua posterior problematização e crítica, constitui-se das Resoluções Políticas do 5Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores, realizado em dezembro de 1987.
  2. Claro está que esse conceito depoder púbico não estatal nada tem a ver com o conceito de público não estatal utilizado por Fernando Henrique Cardoso e Bresser Pereira em sua política neoliberal de desestatização, que passou a transferir recursos estatais para organizações sociais de interesse público prestarem serviços até então realizados pelo estado. Lei n.º 9.637/1998
  3. Resoluções Políticas, par. 75
  4. http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/resolucoespoliticas_0.pdf
  5. Mance, E. A. “Eixos de Luta e a Central de Movimentos Populares”.In: Revista de Cultura Vozes. N. 6, Ano 85 – nov-dez 1991, p. 645-671
  6. Mance, E. A. “Eixos de Luta e a Central de Movimentos Populares”.In: Revista de Cultura Vozes. N. 6, Ano 85 – nov-dez 1991, p. 645-671
  7. https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1938/programa/cap01.htm
  8. “Os setores que chamamos normalmente de camadas médias e pequena burguesia — sendo, estes últimos, trabalhadores e também proprietários de seus meios de produção — embora tenham interesses comuns com a burguesia (por exemplo, algumas camadas de pequenos proprietários vivem da exploração do trabalho assalariado, ainda que em pequena escala) têm, também, profundas contradições com o capitalismo, que os coloca cotidianamente sob ameaça de arruinamento e de proletarização.”Resoluções Políticas, par. 92
  9. Resoluções Políticas, par. 42
  10. Edições CLAS (Cuestiones Actuales del Socialismo). “Autogestão Socialista Iugoslava. Noções Fundamentais”. Belgrado, 1980. Apud NASCIMENTO, Claudio. Autogestão: Economia Solidária e Utopia.In: Outra Economía – Volumen II – No 3 – 2º semestre/ 2008, p. 28

Por Euclides André Mance, filósofo e teórico da Economia Solidária e da Filosofia da Libertação, para a Tribuna de Debates do 6º Congresso. Saiba como participar.