Um bairro dos arredores de Turim (Itália) amanheceu neste sábado (23) com um mural de tributo aos médicos e enfermeiros cubanos que colaboram no combate à pandemia do coronavírus na Itália. “Médicos, não bombas. Obrigado Cuba. Obrigado, Henry Reeve Brigade” é a inscrição que acompanha a pintura, numa referência à brigada formada pelo comandante Fidel Castro em 2005, após os Estados Unidos rejeitarem uma oferta de 1.586 médicos humanitários para o atendimento às vítimas do furacão Katrina.
Nesta segunda (25), o mural será apresentado em apoio à convocação promovida na Itália pela Rede de Capítulos Italianos de Intelectuais e Artistas em Defesa da Humanidade, para atribuir o Prêmio Nobel da Paz ao Contingente Internacional de Médicos Especializados em Situações de Desastres e Graves Epidemias Henry Reeve.
Lançada em 28 de abril pelas associações Cuba Linda e France Cuba, a iniciativa recebeu o apoio de forças políticas e sindicatos de França, Espanha, Irlanda e Itália. As entidades criaram o e-mail nobelpaixmedcub@gmail e a página do Facebook ‘Prêmio Nobel das Brigadas Médicas Cubanas’ para arregimentar apoio público à campanha.
“A comunidade internacional está testemunhando a solidariedade dos profissionais de saúde que deixam seu país para prestar serviços e compartilhar experiências em outras partes do mundo, que no caso da pandemia causada pelo novo coronavírus chegam ao coração da Europa”, afirma a declaração das entidades.
Tratados como indesejáveis por Jair Bolsonaro assim que ele ganhou as eleições de 2018, médicos e enfermeiros cubanos foram aclamados como heróis no sábado em outra cidade italiana. Em Crema, um evento organizado por autoridades de todo o país saudou a partida da primeira equipe enviada à Itália, após dois meses trabalhando com profissionais italianos em um hospital de campanha.
Os 52 membros da brigada médica Henry Reeve – 36 médicos, 15 enfermeiros e um especialista em logística – desembarcaram em 22 de março para ajudar na batalha travada na Lombardia contra a Covid-19. A região ainda lidera em número absoluto de casos na Itália, com 86.825 de um total de 229.327, segundo a Defesa Civil. Uma segunda equipe de profissionais cubanos está alocada em Turim desde 13 de abril.
“Nós éramos náufragos, e vocês nos socorreram sem perguntar nosso nome nem nossa proveniência. Após meses de luta, angústia e dúvidas, agora enxergamos a luz, mas apenas porque ficamos uns ao lado dos outros”, disse a prefeita de Crema, Stefania Bonaldi, durante o evento.
“Vocês chegaram no momento mais dramático e se esforçaram para transformar o lamento em dança, uma dança coletiva que mostra que heróis solitários não vencem as grandes batalhas”, discursou a prefeita para prefeitos de cidades vizinhas e para o público reunido além das barreiras de proteção.
“Como todos nós usamos um pulôver vermelho com a frase ‘Eles me chamam Cuba’, foi muito fácil sermos reconhecidos e, no caminho para a cerimônia, todas as pessoas começaram a aplaudir dos dois lados da rua”, comentou via Messenger Luis Ángel Sánchez Rodríguez, um dos médicos pertencentes à brigada cubana. Ele diz que desde crianças até idosos pararam para cumprimentá-los. “Foi incrível, avassalador”, recorda.
Maior taxa de médicos por habitante
Cuba tem a maior taxa de médicos por habitante do mundo (nove por mil habitantes). São mais de 89 mil médicos e 84 mil enfermeiros. Neste sábado, se comemorou o 57º aniversário do início da colaboração médica cubana com o mundo. Desde 1963 até hoje, mais de 420 mil trabalhadores cubanos da saúde estiveram presentes em 169 países, em mais de 600 mil missões.
Quase seis décadas após um avião partir para a Argélia com a primeira brigada, mais de 2.579 colaboradores, organizados em 28 brigadas médicas do Contingente Henry Reeve, contribuem hoje para a luta contra a Covid-19 em 24 países. A eles se juntam os mais de 28 mil profissionais da saúde que já trabalharam em 59 países.
A brigada médica criada por Fidel Castro em 2005 recebeu o nome de Henry Reeve em homenagem ao soldado norte-americano que lutou no exército de libertação de Cuba por sete anos, participando de mais de 400 batalhas contra o exército espanhol na guerra de independência. Na época, o revolucionário descreveu sua graduação como médico como “abrir uma porta para um longo caminho que leva à ação mais nobre do que um ser humano pode fazer aos outros”.
Dos EUA, apenas calúnias
Na atualidade, o governo norte-americano mantém outra postura. No começo de maio, o chefe da diplomacia norte-americana, Mike Pompeo, acusou Cuba de “se aproveitar” da epidemia “para continuar sua exploração dos trabalhadores médicos cubanos”, criticando Qatar e África do Sul por contratarem quase 450 profissionais para enfrentarem a Covid-19.
Pompeo foi além e felicitou “os líderes do Brasil, Equador e Bolívia”, onde chegaram a trabalhar dez mil profissionais cubanos quando seus governos eram aliados de Havana, por “terem se negado a fazer vista grossa a estes abusos por parte do regime cubano”. O presidente cubano, Miguel Díaz-Canel, respondeu afirmando que “os Estados Unidos enganam deliberadamente quando atacam a cooperação de Cuba com mentiras e calúnias”.
Um dia depois da altercação, um cidadão cubano-americano disparou uma arma de fogo contra a Embaixada de Cuba em Washington. O chanceler cubano, Bruno Rodríguez, convocou a encarregada de negócios dos Estados Unidos em Havana, Mara Tekach, para fazer um “enérgico protesto” pelo que considerou uma “agressão terrorista”.
Rodríguez disse que é impossível “dissociar um fato como este do recrudescimento da política de agressão e hostilidade aplicada pelo governo dos Estados Unidos contra Cuba, nem do endurecimento do bloqueio” e “dos ataques contra a colaboração médica cubana”.
“Que direito tem o secretário de Estado dos Estados Unidos de pressionar governos soberanos para que privem seus cidadãos de assistência médica?”, perguntou-se o chanceler cubano. “É tempo de solidariedade, não de mesquinharia”, acrescentou Rodríguez, opinando que, apesar dos esforços de Washington por desacreditá-lo, o trabalho dos médicos cubanos “é solicitado e reconhecido internacionalmente”.
O episódio se centra, desde o início da crise do coronavírus, na chamada diplomacia das batas brancas, por meio da qual Havana enviou brigadas sanitárias a países do Caribe, América Latina e África, mas também a Itália, Andorra e, com autorização de Paris, Martinica, Guadalupe e Guiana Francesa, territórios franceses de ultramar.
A hostilidade ianque, que é anterior à pandemia do coronavírus, não impediu que a Brigada Médica Henry Reeves fosse nomeada para o Prêmio Nobel da Paz pela Conferência Anual dos Sindicatos Noruegueses, pelos esforços para enfrentar a pandemia de Ebola em 2014-15. Embora a brigada não tenha recebido o prêmio em 2015, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lhe concedeu o Prêmio Doutor Lee Jong-wook 2017 de Saúde Pública em reconhecimento ao seu trabalho.
Marcia Cobas Ruiz, vice-ministra cubana de Saúde Pública para Colaboração, Relações Internacionais e Informação, diz que a contribuição faz parte da história da colaboração médica que a Revolução Cubana desenvolveu e que tem a ver com a vontade e o espírito de ajudar e enfrentar epidemias, terremotos e inundações. “Desde que a pandemia começou a se espalhar e Cuba recebeu pedidos de ajuda de várias nações, foram organizadas várias brigadas. A primeira partiu para a Venezuela”, informou.
“A possibilidade de uma pandemia é discutida desde o início deste século, e Cuba preparou seu exército de jaleco branco”, afirma Arturo López-Levy, professor da Universidade Holy Names, na Califórnia (EUA). “No final da Guerra Fria, Cuba desenvolveu essa capacidade, e é lógico que seja uma ferramenta muito importante de sua política externa”, explicou López-Levy, lembrando que “Cuba joga com suas alianças internacionais para contrabalançar as pressões dos Estados Unidos”.
“O coronavírus deu a Cuba uma nova oportunidade de exportar serviços médicos”, diz o diretor do Instituto de Pesquisa Cubana da Universidade Internacional da Flórida, Jorge Duany. “Na Europa, havia médicos cubanos apenas em Portugal. Agora, por causa da crise, abriu-se uma oportunidade que pode deixar um legado”, aponta López-Levy.
De volta à atividade no Brasil
No começo desta semana, o governo brasileiro oficializou os nomes dos primeiros 159 médicos cubanos autorizados a trabalhar novamente no programa Mais Médicos. Criado em 2013 pela presidenta Dilma Rousseff, o Mais Médicos permitiu atender populações de regiões mais pobres e rurais, onde não havia serviço médico. No programa, para o qual Cuba enviou mais de oito mil profissionais em anos anteriores, os caribenhos ocupavam quase metade dos cargos de atenção básica nos 26 estados do país, mais o Distrito Federal.
Os médicos haviam sido contratados pelo Brasil por meio da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), num acordo duramente criticado por Jair Bolsonaro durante a campanha presidencial. O então candidato comparou o fato de os médicos terem de devolver parte do salário ao governo cubano à “escravidão”, e questionou a capacidade e treinamento recebido pelos profissionais.
O governo cubano retirou os médicos do Brasil em novembro de 2018, pouco depois de Bolsonaro vencer a eleição. Mas centenas deles decidiram ficar. Alguns se casaram ou formaram família, mas todos perderam a licença para atuar na atividade e tiveram que procurar sustento em outras áreas.
No fim de 2019, o Congresso incluiu a reintegração desses profissionais na lei que criou o Médicos pelo Brasil, o programa que deve substituir o Mais Médicos. Desde o início desse ano os cubanos alimentavam a expectativa de serem recontratados, e o governo federal já previa a convocação deles antes da eclosão da pandemia do coronavírus. Eles ocupariam postos em cidades distantes dos grandes centros.
Em março, quando os editais de convocação de médicos para atuação no combate à pandemia foram lançados, Bolsonaro disse que o Brasil não buscaria a ajuda de novos médicos em Cuba, mas os que tinham recebido “asilo” do governo. “Esses que nós estamos aceitando aqui é porque estão no Brasil. Ninguém está buscando lá em Cuba médico nenhum, não”, declarou.
A reintegração desses profissionais chegou a ser posta em dúvida em abril, devido à falta de clareza dos editais lançados para médicos intercambistas estrangeiros. Foi preciso a intervenção do defensor público federal Wagner Wille Nascimento Vaz, da Regional de Direitos Humanos no Amapá e Pará, que identificou irregularidades em um edital publicado em 26 de março que, segundo ele, não permitia a inscrição de cubanos que haviam atuado no Mais Médicos e não constavam em uma lista de médicos “pré-aprovados” para participar.
“Trata-se de uma restrição ilegal. Além de prejudicar os profissionais, lesa a população de regiões carentes do país, que estão mais vulneráveis em função do coronavírus”, defendeu o procurador em uma ação que pediu o fim da trava que impedia a participação de outros candidatos e a prorrogação do prazo de inscrição. A Justiça concedeu liminar favorável à defensoria.
“O programa Mais Médicos nos dá um registro médico autorizado pelo ministério. A gente não pode trabalhar em hospitais. Então, nosso trabalho seria em postos de saúde, em unidades básicas, como fizemos por cinco anos”, disse à ‘BBC News Brasil’ Niurka Valdes Perez, representante da associação dos médicos cubanos no Brasil, Aspromed. “A maioria de nós trabalhou num período longo no Brasil. Ou seja, conhecemos o SUS (Sistema Único de Saúde), conhecemos como é trabalhar com a população brasileira.”