Brasil no escuro das pesquisas nacionais, denunciam especialistas

Além da pandemia do COVID-19 e da mais grave crise econômica, o Brasil vive hoje um apagão de estatísticas, denunciam em artigo Tereza Campello, André Calixtre, Jorge Messias e Sandra Brandão

Bruno Caramori

Governo sabota estatíticos para dificultar combate à pandemia.

Além do enfrentamento à pandemia do COVID-19 e da mais grave crise econômica de sua história, o Brasil vive hoje um apagão de estatísticas. Mais um desafio a ser enfrentado, decorrente da interrupção do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) e da impossibilidade de o IBGE realizar a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua no formato regular.

Sem estas bases, o Brasil fica no escuro sem pesquisas nacionais sobre emprego e desemprego. O CAGED representa o registro administrativo de todo o emprego formal privado no país, enquanto a PNAD realiza pesquisas domiciliares regulares que envolvem tanto o setor formal quanto o informal da economia. E ressalte-se que a interrupção da PNAD Contínua afetará também o cálculo do PIB, uma vez que seus dados alimentam o Sistema de Contas Nacionais.

A cegueira estatística impede qualquer decisão racional do Estado. Diante da Pandemia, as variáveis chave do processo de tomada decisão estão relacionadas ao amparo material necessário às famílias para estas realizarem o distanciamento social. Como formular políticas públicas corretas nesse sentido se o Brasil não sabe a taxa de desemprego ou a dinâmica do mercado de trabalho brasileiro no momento da crise? A urgência do tema, portanto, é evidente.

No caso do CAGED, sua interrupção decorre de uma alteração imprevidente promovida pelo Ministério da Economia. A partir de janeiro de 2020, as empresas deveriam passar a informar os dados sobre movimentação de empregados por meio do eSocial. Embora a mudança tivesse uma boa justificativa – evitar duplicidades e simplificar procedimentos para as empresas -, ela foi realizada sem cautelas adicionais e necessárias e em prazo exíguo – a portaria definindo as mudanças foi publicada em 15 de outubro de 2019. Em decorrência, não estão disponíveis, para 2020, os dados que permitiriam acompanhar a evolução do emprego com carteira assinada no setor privado divulgados mensalmente pelo CAGED.

Quanto à PNAD Contínua, a dificuldade para sua continuidade decorre das restrições impostas pelo isolamento social e da incapacidade e temeridade do Governo Bolsonaro em construir soluções não autoritárias aos direitos dos cidadãos, como foi a Medida Provisória nº 954, de 2020, suspensa por decisão do STF por flagrante inconstitucionalidade. Como a coleta de dados é realizada nos domicílios, por meio de visita dos entrevistadores, era impossível manter o procedimento usual de obtenção dos dados.

O apagão de dados não é uma dificuldade técnica, e sim uma escolha política muito conveniente a quem quer esconder objetivos inconfessáveis., alertam os especialistas. Foto: Werther Santana.

Em março, foi possível finalizar a coleta, mas com uma taxa de resposta de 61,3%, abaixo da registrada nos dois meses anteriores, de cerca de 88%, segundo o IBGE. A partir de abril, no entanto, a coleta de dados da PNAD Contínua, principal fonte de dados sobre o mercado de trabalho nacional, está comprometida. Ademais, não se sabe se serão preservados os dados longitudinais, que avaliam o comportamento do mesmo domicílio ao longo do tempo.

Depois de dois meses da pandemia, o Governo anuncia que irá implantar uma pesquisa domiciliar sobre a COVID19, com alguns dados sobre desocupação. Optaram por um arremedo de pesquisa em detrimento da série histórica. A solução correta seria o oposto. Preservar a série e agregar as questões da pandemia.

Todas instituições e todos pesquisadores brasileiros devem preocupar-se com este cenário. O Brasil precisa conhecer sua realidade, para dimensionar a intensidade da crise, saber os acertos das ações de proteção contra a crise e planejar as políticas para estimular a retomada. Como fazer isto sem as principais fontes de informação?

Acreditamos haver alternativas e listamos a seguir algumas propostas que poderia ajudar a superar este apagão de estatística. A cegueira estatística circunstancial não pode se tornar em cegueira deliberada. Assim, convidamos todos os acadêmicos e pesquisadores proporem aprimoramentos a estas propostas, para que, juntos, superemos mais esta leviandade com nosso presente e futuro.

Proposta para o CAGED

Para não divulgar os dados de janeiro/2020, o Ministério da Economia alega que há atraso no envio de dados por cerca de 2,6% das empresas que tiveram movimentação. Essa é a explicação para a suspensão da divulgação dos dados do CAGED.

Propõe-se, emergencialmente, criar uma série extraordinária para o CAGED 2020, para acompanhar o impacto da crise associada à pandemia. O estoque de 2019 seria atualizado com os dados recebidos em janeiro e, posteriormente, usado como base para quantificar, desagregando por setor, tamanho de empresa e local (estado e município):

– o desemprego formal, com base nas informações dos pedidos de seguro desemprego;

– os efeitos da crise com base nos trabalhadores formais abrangidos pelas medidas da MP 936.

Com isso, seria criada uma “série provisória” ao CAGED, que permitiria dimensionar a evolução do emprego formal no período da crise.

Proposta para a PNAD Contínua

A continuidade da PNAD Contínua requer sua adaptação para captação de dados não presenciais. Chegar aos domicílios sorteados para compor a amostra exigirá realizar a pesquisa por meios virtuais ou, preferencialmente, por meio da aplicação do questionário por telefone.

Propõe-se uma parceria voluntária entre as empresas de telefonia e o IBGE que, simultaneamente, preservará o sigilo dos clientes das primeiras e poderá assegurar a coleta dos dados necessários ao trabalho da segunda. Para isto, o IBGE cederia para as empresas de telefonia, conforme as áreas em que atuam, a lista dos domicílios sorteados para compor a amostra da PNAD Contínua.

As empresas de telefonia enviariam, para cada telefone relacionado a cada domicílio, um SMS explicando a parceria e pedindo que o assinante acesse um link constante da mensagem, que o levaria à página do IBGE. Nesta página, ele confirmaria o endereço e escolheria a forma de resposta à PNAD Contínua – auto preenchimento de questionário ou recebimento de ligação de pesquisador do IBGE, para o qual forneceria seu telefone.

Esta solução é viável e garante a privacidade e sigilos telefônicos e demais direitos dos brasileiros, ao contrário do que ocorreria com a desastrosa proposta do Governo Bolsonaro (MP 954).

Para reduzir eventuais problemas de desempenho amostral, esta estratégia exigirá ajustes nos procedimentos metodológicos do IBGE. Mas acredita-se que a experiência do IBGE com a coleta experimental de dados para o Censo 2020 em Poços de Caldas tenha gerado aprendizado para esse esforço.

Ademais, essas perdas poderão ser reduzidas se a imprensa, as redes sociais e as empresas de comunicação forem envolvidas nessa parceria, mobilizadas para informar a população sobre este esforço. O mesmo papel mobilizador pode ser assumido por outras instituições da sociedade civil, desde a OAB até coletivos sociais.

É urgente a reversão deste quadro. Como dissemos, a cegueira estatística impede qualquer decisão racional do Estado. O apagão estatístico também impede trabalhadores, sindicatos, sociedade civil, pesquisadores de exercerem seu papel de denúncia do que se prevê como a maior crise de desemprego da história. Esta crise seria evitável se o Estado tivesse tomado as medidas para preservar os empregos e garantisse a sobrevivência do sistema produtivo na quarentena, em especial as micro, pequenas e médias empresas. O apagão de dados não é uma dificuldade técnica, e sim uma escolha política muito conveniente a quem quer esconder objetivos inconfessáveis.

Por Tereza Campello[1] , André Calixtre[2] , Jorge Messias[3] e Sandra Brandão[4]

[1] Economista, Doutora por Notório Saber em Saúde Pública pela FIOCRUZ e Ex-Ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2011- 16).[2] Mestre em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp e doutorando em Economia pela UnB.

[3] Mestre e doutorando em Desenvolvimento pela UNB.

[4] Mestre em Economia pela Unicamp.

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