Bacurau é um filme que deve ser visto a contrapelo (atenção, este texto contém spoiler).
A leitura simplória de que o filme retrata metaforicamente uma aliança do imperialismo ianque com a burguesia nacional sulista para exterminar os pobres do nordeste o equipara, com sinal trocado, aos filmes produzidos rotineiramente por Hollywood, muitos, aliás, de boa qualidade.
Não é o caso, porém. Bacurau não é um western de esquerda periférica.
A chave para sua compreensão encontra-se numa ideia fora do lugar: o “museu”.
Bacurau é um vilarejo minúsculo onde há crianças e adultos. Os jovens deixaram o lugar para estudar fora, “até no exterior”, conta, de início, o professor da comunidade.
Os costumes são bastante liberais. As mulheres assumem protagonismo, inclusive sexual. Drogas psicotrópicas são aceitas por todos.
Em meio à precariedade material e ao habitual desleixo do poder público, os moradores vivem sem grandes contradições uma vida que lhes parece aceitável.
Um grupo de turistas, liderado por um tipo fascistoide teuto-americano, chega a Bacurau em busca de adrenalina.
A proposta é simples: em vez de caçar grandes mamíferos nas savanas do Quênia, por que não caçar afrodescendentes no sertão pernambucano?
A aventura é gamificada. Um drone interativo orienta os participantes. Há regras e um sistema de pontuação.
No decorrer do jogo, os sulistas colaboracionistas descobrem que, por não serem suficientemente brancos, seu inevitável extermínio conta pontos. Antes disso, desdenham de uma possível visita ao “museu”, que poderia ativar-lhes a intuição, poupando-lhes a vida.
O game, contudo, depois dos primeiros abates, termina mal para os players.
A reação local se organiza a partir do “museu”, ou melhor, a partir da mobilização de um passado recente de extrema violência, suspenso por uma utopia matriarcal que literalmente tirou a cidade do mapa.
Mas, as armas estão lá, bem como a munição. A memória da violência está viva nas fotos e apetrechos.
Os matadores profissionais de outro tempo, um deles de sugestivo apelido “Pacote”, apresentam-se, dispostos à ação.
Logo começam as decapitações. Todos os turistas são mortos, inclusive com a ajuda do líder forasteiro. Uma moradora pede para que as marcas de sangue nas paredes das casas sejam preservadas. O “museu” ganha novos cômodos.
O líder forasteiro tem a vida poupada. O fascismo nunca morre. Em Bacurau, ele é enjaulado numa cela subterrânea, não sem antes prometer ressurgir. Bacurau não é um filme sobre imperialismo, mas sobre a nossa barbárie.
Fernando Haddad é professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo
*Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo