O retrocesso nos direitos e nas conquistas sociais das últimas décadas só será evitado se “sindicatos, associações e as pessoas pressionarem” o Congresso Nacional para frear a pauta encampada pelo governo golpista de Michel Temer. A avaliação é da senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR), uma das integrantes pró-democracia da Comissão Especial do Senado que analisa o processo de impeachment contra a presidenta eleita, Dilma Rousseff.
A senadora reforça que o golpe para afastar Dilma do mandato é fruto da vontade de paralisar a Operação Lava Jato e de impor uma pauta de ataque aos direitos dos trabalhadores. Para Gleisi, o governo golpista de Temer não representa a sociedade, mas apenas o Congresso Nacional. “É um governo que não representa o povo porque não tem compromisso com o povo, porque não tem voto popular”, afirmou.
“Quem colocou Temer foram os deputados e senadores. Então, a representação desse governo é a representação desta Casa, pega majoritariamente pela elite que domina a política brasileira há tantos séculos.”
Segundo Gleisi, só isso justifica que “em pleno 2016, com 52% de mulheres na população brasileira”, não haja nenhuma mulher ministra. Nem negros. “É injustificável”, sentencia.
A senadora concedeu entrevista exclusiva à Agência PT e falou sobre a participação feminina na política e do machismo da sociedade brasileira, que criminaliza as vítimas de violência no lugar de acolhê-las. Para Gleisi Hoffmann, sem a garantia de uma presença maior das mulheres na política, “os homens continuam dominando” e as mulheres “continuam sendo vítimas de violência, de maus tratos, de desrespeito”.
Sobre a importância do Partido dos Trabalhadores para o país, a senadora considera que o partido “acabou cedendo ao que era o comum na história da política”, o que “trouxe ao partido prejuízos imensos” e agora impõe a necessidade de uma autocrítica, além da construção de uma frente de esquerda no país.
“Nessa autocrítica não podemos, como diz o ditado popular, “jogar a água da bacia com a criança dentro”. Temos que salvar a criança, porque o PT fez muita coisa boa para este país. Fez muita coisa que melhorou a democracia, que deu direito às pessoas, que reconquistou a dignidade da maioria do povo brasileiro”, afirma.
Leia a seguir a entrevista:
Defina o golpe em três palavras.
Retrocesso, ilegalidade e imoralidade.
Qual a avaliação que a sra. tem da atual conjuntura política do país?
Uma conjuntura muito difícil. Primeiro porque está afetando a nossa democracia, a retirada da presidenta Dilma Rousseff por um processo de impeachment que não tem sustentação legal, por isso chamamos um golpe. A entrada no poder de um governo ilegítimo que tem como seu principal objetivo entregar ao mercado financeiro e a parte do Parlamento compromissos que atendam ao andar de cima da sociedade, retirando direito dos trabalhadores e do povo brasileiro, cortando programas sociais.
Também com o compromisso de barrar as operações que estão em curso no país e manter na condução do Brasil uma elite que sempre comandou aqui, a despeito dos interesses da maioria do povo. O Congresso Nacional tem graves problemas, muitos dos seus membros estão denunciados no processo, portanto, não têm legitimidade para julgar a presidenta Dilma, no meu entender. É um Congresso comprometido com ideias muito mais conservadoras e de elite do que da maioria da população e nós estamos numa situação bastante difícil de saída desse processo.
Sobre a percepção popular, a sra. acha que a população brasileira já percebeu as razões do golpe e que o governo golpista de Michel Temer vai trazer retrocessos às conquistas e em direitos?
É um processo em curso, mas que está avançando. As pessoas estão vendo que o que motivou o afastamento da presidenta Dilma não foi crime de responsabilidade contra o orçamento, as chamadas pedaladas fiscais ou os decretos de suplementação orçamentária.
Foi a vontade de barrar a Operação Lava Jato, o que ficou evidente com as gravações do senador Romero Jucá [ex-ministro do Planejamento do governo golpista de Michel Temer], e o desmonte do Estado de bem-estar social mínimo que nós construímos depois da Constituição de 1988. Isso está ficando evidente. Então, a população vai começar a ter mais clareza do que está acontecendo.
Há sinais e manifestações de alguns senadores que parecem ter dúvidas em relação ao voto final no plenário sobre o processo de impeachment. Como estão as conversas com esses senadores?
Os sinais são bem positivos, até porque muitos já tinham dito que iriam votar pela admissibilidade do processo, mas que depois iriam analisar o conteúdo. E depois com tudo o que está acontecendo em relação ao governo interino de Michel Temer, das denúncias que estão saindo, dos problemas, cada vez mais esses senadores estão se convencendo de que o processo instaurado aqui não é legítimo.
Temos conversado muito e espero que a gente consiga reverter, temos a meta de ter pelo menos 30 senadores contra o impeachment. Temos conversado com o senador Cristovam Buarque, Acir Gurgacz, Romário, Ivo Cassol, com vários senadores que se posicionaram de uma maneira mais aberta quando votaram pela admissibilidade do processo no Senado.
Qual a pior coisa do governo golpista de Michel Temer?
Retroceder os direitos sociais conquistados, esta é a pior coisa para mim. Tirar o aumento real do salário mínimo, desvincular salário mínimo da Previdência, limitar o crescimento dos gastos em relação à inflação, retirando recursos da Saúde e da Educação, acabar com Minha Casa, Minha Vida, acabar com o Bolsa Família. De longe, isso é a pior coisa.
Esse é um governo de homens, brancos, velhos, ricos e sem voto. Por que não é possível um governo com essas características representar o Brasil e o que se pode esperar caso o golpe seja concretizado?
Não diria de velhos, diria de antigos. Porque os jovens que estão nesse governo são a terceira ou quarta geração dos que já tiveram no comando do país, então é a elite que continua. É um governo que não representa o povo porque não tem compromisso com o povo, porque não tem voto popular. Este governo tem compromisso com o Congresso, que é quem colocou Temer lá.
Quem colocou Temer foram os deputados e senadores. Então, a representação desse governo é a representação desta Casa, pega majoritariamente pela elite que domina a política brasileira há tantos séculos. Como justificar que, em pleno 2016, com 52% de mulheres na população brasileira não tenha nenhuma mulher no governo? Ou com a maioria negra ou parda não ter nenhum negro representando? Não tem jovens no sentido de diversificação de classe e de representação. É injustificável.
Por isso a gente diz que não é legítimo. As pessoas dizem “não, mas ele foi eleito com a Dilma”. Se tivesse essa concepção, ele faria um governo voltado para a sociedade brasileira, não para o Congresso Nacional. Tanto não foi eleito com a Dilma que o compromisso dele para se manter no poder é única e exclusivamente com o Congresso Nacional, a começar pela manutenção do seu governo.
O que se pode esperar de um governo com essa composição em relação a políticas sociais?
Nada. Políticas sociais? Nada.
E das reações na sociedade civil, nos movimentos sociais?
Ir para as ruas e resistir. Sindicatos, associações, as pessoas têm que resistir. Têm que fazer pressão nesta Casa, para não deixar passar medidas que representem retrocessos em direitos. Vamos ter que resistir muito.
Inevitável neste momento a gente não pensar em reforma política. Quais os princípios de uma reforma política num governo Temer?
A reforma política é fundamental. Se tivéssemos feito antes, talvez a gente teria evitado uma série de problemas investigados pela Lava Jato, porque estão muito concentrados em doações de campanha. Então, a pauta da reforma política é campanha sem doação privada; regras claras de financiamento; barreira partidária, não é possível essa quantidade de partidos, isso não é democrático, é antidemocrático; rever a representatividade da Federação, em termos de pessoas que estão aqui; o acesso aos meios de informação; o uso desses meios no processo eleitoral; o custo de campanha.
Há uma série de questões fundamentais que espero que a gente consiga num curto espaço de tempo convocar uma discussão sobre isso. Seja com o Congresso em vigor, seja com uma Constituinte exclusiva.
Nesse conjunto de medidas, deveria entrar o mínimo de 50% de mulheres no Congresso Nacional?
Sim, nós tentamos isso e conseguimos aprovar 10%. Se não mudar isso, vai continuar a acontecer o que acontece por aí, os homens continuam dominando, as mulheres não entram. E continuam sendo vítimas de violência, de maus tratos, de desrespeito.
A sra. já relatou o projeto que tipifica o feminicídio como crime e é autora de outro projeto que muda a Lei Maria da Penha. Que mudanças são essas?
São duas mudanças. Uma para que o crime fique incondicionado, ou seja, uma vez feita a denúncia, a vítima sendo atendida pela polícia, não pode mais retirar a queixa, portanto, o Ministério Público tem que tocar a denúncia e culpabilizar o culpado. A segunda é sobre a medida protetiva, porque, hoje, se o agressor se aproximar da mulher infringindo a medida protetiva, tem pena administrativa, e o que estamos propondo é colocar na Lei Maria da Penha que se o agressor se aproximar, vai ter restrição de liberdade. Além da patrulha da Maria da Penha, de acompanhamento das mulheres em acompanhamento, e da penalização maior em casos de injúria por razão de gênero.
A sra. avalia que a sociedade brasileira é machista? E por quê?
É machista, claro. Primeiro, porque ainda culpabiliza a vítima. Quem é vítima de violência doméstica a primeira pergunta que responde é “o que você fez para isso acontecer?”, e não “está se sentindo bem?”, como se a mulher fosse sempre a culpada. Segundo, porque nos espaços decisórios, a mulher tem que se mostrar muito mais qualificada que o homem para poder ascender. Há uma barreira sim, inclusive de desrespeito e desqualificação das mulheres.
Recentemente, tivemos casos trágicos de estupros que ganharam dimensões de transparecer algo que acontece frequentemente. As estatísticas dizem que a cada 11 minutos uma mulher sofre uma violência. A primeira reação do Congresso foi endurecer a legislação. Isso resolve?
Só isso não resolve, mas foi importante ter uma resposta do Congresso. Mas precisamos mudar a cultura. Não é possível que os homens se sintam no direito de sair agredindo as mulheres, violentando as mulheres, fazendo estupro coletivo e singular e achar que isso é normal, que se disponha do corpo da mulher como puder. Esse caso do Rio de Janeiro ganhou essa dimensão porque foi para as redes sociais.
E o pior foi quando no início do processo o delegado achava que não era estupro, que poderia ter havido consentimento ou pelo comportamento da vítima. Olha a loucura que é isso!
Como muda essa cultura? E que ressonância se pode ter na sociedade?
Muda pela educação, pela participação das mulheres nos espaços de decisão, porque se a gente tiver uma correlação de forças maior aqui no Congresso Nacional, a gente aprovava coisas diferentes. Não teriam retirado, por exemplo, a perspectiva de gênero do currículo educacional. Tiraram. Temos avançado a passos lentos, mas temos avançados.
É bem melhor a situação hoje do que há 30, 40 anos, não tenho dúvidas. Mas por isso que a gente quer ações afirmativas, para acelerar esse processo. Se a gente vê a educação nas escolas…é de pequeno que a criança se define.
Tem um filme em que a professora pede no jardim de infância que as crianças desenhassem um bombeiro, um médico, um policial. Todas figuras masculinas nos desenhos. E a professora pedia para entrar uma mulher bombeira, uma médica e uma policial, e as crianças ficaram olhando. A professora dizia “pois é, vocês desenharam homens, mas a mulher pode estar nesses espaços”. Isso tem uma diferença imensa para a construção de valores, de avaliação que as pessoas têm.
Em outra frente de atuação do seu mandato, há o projeto 71/2011 que põe fim ao 14º e 15º salários dos parlamentares, aprovado em 2013 e com estimativa de R$ 30 milhões de economia anual. E o projeto que propõe reduzir em 10% os subsídios aos dos parlamentares. O que fazer para que o Congresso Nacional seja mais sensível em relação a esses temas corporativos?
É tão difícil isso, porque, mesmo na crise em que o Brasil passa, o governo mandou para o Congresso Nacional, que aprovou, o aumento dos subsídios para o Supremo Tribunal Federal, que gera o efeito cascata.
Tenho um outro projeto que proíbe o aumento em cascata. Agora, esta Casa é sensível a lobbies e, infelizmente, as corporações têm lobbies mais fortes. Então, Judiciário vem fazer lobby, servidor público, os deputados também legislam em causa própria. Por isso é importante sempre ter transparência, ser crítico e que a gente tornar a legislação mais pesada para evitar esse tipo de coisa.
Há algum tempo se presencia uma ofensiva em relação ao PT, que visa questionar inclusive a importância histórica do partido para o país, na construção de uma agenda voltada para os trabalhadores, de interesse da população mais pobre. Como a sra. analisa essa ofensiva que tenta criminalizar o PT e o que a sra. acha que o poderia e pode ser feito de diferente pelo partido?
O PT pode fazer uma grande autocrítica. Não tenho dúvidas que o PT errou muito, entrou no governo pregando uma forma de se posicionar e de governar e acabou cedendo ao que era o comum na história da política. Isso trouxe ao partido prejuízos imensos. Com certeza, tem fazer uma autocrítica, buscar os princípios que sempre nortearam o partido. Claro, considerando as mudanças de conjuntura, os avanços da modernidade, o avanço das relações na sociedade.
Mas não pode ficar no auto-açoite, aceitar que o PT acabou e não serve para nada, é o maior equívoco do Brasil. Porque isso não é verdade. Nessa autocrítica não podemos, como diz o ditado popular, “jogar a água da bacia com a criança dentro”. Temos que salvar a criança, porque o PT fez muita coisa boa para este país. Fez muita coisa que melhorou a democracia, que deu direito às pessoas, que reconquistou a dignidade da maioria do povo brasileiro. Tem que saber mediar e ir reconstruindo o caminho. Também não querer se arvorar de ser a hegemonia da esquerda brasileira.
Acho que se isso tudo ensinou algo para nós, ensinou que temos que conformar um campo de esquerda no Brasil urgentemente, agregar pessoas que estão lutando por ideias parecidas com as nossas e não querer dar a linha para tudo.
Por Camilo Toscano, da Agência PT de Notícias